

Literatura brasileira, Trechos,
Nazismo no Brasil profundo
No romance Meu passado nazista, André de Leones mostra a penetração da ideologia propagada por Hitler no Centro-Oeste brasileiro a partir dos anos 90; leia trecho
07abr2025Depois de perder seus pais, Leandro passa a viver com o avô, um nazista, em uma cidade onde vários dos habitantes também simpatizam com Hitler. Esse é o pano de fundo de Meu passado nazista, novo romance do escritor goiano André de Leones publicado pela editora Record.
Ambientada no Centro-Oeste do Brasil entre as décadas de 90 e 2020, a história desemboca em uma sucessão de eventos imprevisíveis quando um caso extraconjugal invade a trama e acaba levando o protagonista a descobrir a verdade dolorosa sobre seu avô, Konrad Helfferich.

Entrelaçando traumas familiares e conflitos pessoais com o contexto político-social do período narrado, o escritor goiano traça uma ligação entre duplas sertanejas, a Era Collor e a persistência do nazismo no Brasil.
Trecho de ‘Meu passado nazista’
Nazistas. Nazistas em toda parte. Nazistas: Cristian Sênior chegava do trabalho e, ao se deparar com a molecada no alpendre, parava no topo da escada e. E meu avô. E Karl Josef Silberbauer. Ouve só essa. SS-Oberschar führer Karl Josef Silberbauer, do Sicherheitsdienst des Reichsführers-SS, prendeu Anne Frank na manhã de 4 de agosto de 1944. Ela morreu em Bergen-Belsen em fevereiro ou março de 1945, provavelmente de tifo; houve no campo uma epidemia que matou cerca de 17 mil prisioneiros por aqueles dias. Bergen-Belsen seria liberado por tropas britânicas em 15 de abril de 1945. Silberbauer (21 jun. 1911-2 set. 1972), vienense, soldado do exército austríaco, depois policial (como o pai), depois membro da Schutzstaffel (SS), depois agente do Bundesnachrichtendienst, o serviço de inteligência da Alemanha Ocidental, depois outra vez policial em Viena, depois & agora defunto, que não descanse em paz. Juntou-se à Gestapo em 1939. Eventualmente, foi transferido para o Sicherheitsdienst, em Haia, e logo em seguida realocado para Amsterdã. Ali, trabalhou na Sektion IV B4, unidade subordinada ao RSHA IV B4 de Eichmann e formada por policiais austríacos e alemães cuja missão era localizar e prender judeus nos Países Baixos, os quais eram despachados para os campos de concentração e de extermínio. Em abril de 1945, Silberbauer retornou a Viena, onde foi sentenciado à prisão por uso excessivo da força contra membros do Partido Comunista da Áustria. Passou catorze meses na cadeia. Livre, foi recrutado pelo Bundesnachrichtendienst e trabalhou dez anos infiltrado em organizações neonazistas e pró-União Soviética. Um nazista infiltrado em organizações neonazistas. Em 1954, Silberbauer foi reintegrado à Kriminalpolizei (Kripo) vienense e promovido ao cargo de Inspektor. O Diário de Anne Frank fora publicado em 1950 e os negacionistas de plantão começaram a dizer que tudo não passava de uma farsa, que ela (Anne Frank) sequer existira. Disposto a comprovar a veracidade da história, o sobrevivente da Shoah e caçador de nazistas Simon Wiesenthal (que nunca passou por Silvânia, que nunca identificou e localizou e expôs meu avô, mas tudo bem, eu entendo, peixe pequeno etc.) pensou que a melhor maneira de alcançar tal objetivo seria identificar e localizar e exp or aquele que prendera Anne Frank. Em 1948, após uma pequena investigação, a polícia holandesa divulgara o nome do oficial responsável pela operação como “Silvernagel”. A única pista de que Wiesenthal dispunha, além do nome errado, era o fato de que o sujeito ostentava um sotaque da classe trabalhadora de Viena. Foi só em 1963 que Wiesenthal teve acesso à lista telefônica da Gestapo, utilizada durante a ocupação dos Países Baixos, e ali encontrou o nome “Silberbauer” como alguém lotado na infame Sektion IV B4. O responsável pela investigação dos crimes nazistas em Viena era Josef Wiesinger, que trabalhava para o Ministério do Interior austríaco. Segundo ele, havia vários policiais em Viena com o sobrenome “Silberbauer”, e Wiesenthal teria que fazer uma solicitação por escrito. Esta foi apresentada em 2 de junho de 1963. E ignorada. A polícia vienense identificou de imediato o Inspektor Silberbauer como o indivíduo que Wiesenthal procurava, mas, horrorizada com a péssima publicidade que resultaria do caso, além de não atender à solicitação de Wiesenthal, aproveitou a oportunidade para cometer outro erro: aplicar uma suspensão não remunerada a Silberbauer e ordenar que ele ficasse de bico fechado. Humilhado pelos superiores, o Inspektor se queixou com um colega que, por acaso, era membro do Partido Comunista da Áustria. O tal colega vazou (alegremente, imagino) a informação para o jornal oficial do Partidão, e a notícia foi publicada pelo Izvestia em 11 de novembro de 1963. Wiesenthal decidiu alimentar a fogueira e informou o endereço de Silberbauer para a imprensa holandesa. Quando viu a casa cercada por jornalistas, Silberbauer confirmou que era mesmo o oficial que prendera Anne Frank. Alguém perguntou sobre o Diário, e ele: “Comprei esse livrinho outro dia pra ver se apareço nele, mas não estou lá.” Quando um repórter disse que ele poderia ter sido a primeira pessoa a ler o Diário, Silberbauer achou a ideia muito engraçada e respondeu que “talvez devesse tê-lo pegado do chão”. Ele se lembrava muito bem das circunstâncias da prisão. Quando ouviu de Otto Frank que a família estava escondida ali havia mais de dois anos, expressou incredulidade e só acreditou quando o homem mostrou as marcas que fazia na parede para medir o crescimento de Anne. “O senhor tem uma filha adorável”, teria dito a Otto Frank. Silberbauer não sabia, contudo, quem era o colaboracionista que fornecera a dica sobre o esconderijo. Segundo ele, a ligação fora atendida por seu superior, o SS-Obersturmführer Julius Dettmann, e Dettmann cometera suicídio na prisão em 25 de julho de 1945. Para o governo austríaco, não havia motivos para julgar Silberbauer por crimes de guerra. Em todo caso, a polícia vienense convocou uma audiência disciplinar, na qual ninguém menos que Otto Frank testemunhou que ele apenas cumprira seu dever e se comportara com correção, mas: “Só peço para não ter de ver esse homem outra vez.” Assim, Silberbauer não foi acusado de porra nenhuma e teve a suspensão revogada. Morreu em Viena, em 1972. Imagino que em paz. Nazistas. Nazistas em toda parte. Nazistas: Cristian Sênior chegava do trabalho e, ao se deparar com a molecada no alpendre, parava no topo da escada e. (Não era algo isolado. Acontecia sempre.) E meu avô. Meu avô foi um nazista e eu arrebentei a cabeça dele a marteladas, sic semper nazis, mas (…).
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ABRIL, 2025