Repertório 451 MHz,

Adeus ao vampiro Dalton Trevisan

A curadora Ana Lima Cecilio e o escritor e tradutor Caetano W. Galindo falam sobre a vida e obra do escritor curitibano

13dez2024 • Atualizado em: 18dez2024

Uma das trajetórias mais longevas e prolíficas da literatura brasileira se encerrou no último dia 9 de dezembro com a morte de Dalton Trevisan, perto de completar 100 anos. Em mais de 80 anos dedicados aos livros, o autor de O vampiro de Curitiba (1965), A polaquinha (1985) e Cemitério de elefantes (1993) continuava ativo, escrevendo e reescrevendo seus textos, uma obra iniciada na década de 40. Neste 125º episódio do 451 MHz, a curadora literária Ana Lima Cecilio e o escritor e tradutor Caetano W. Galindo conversam sobre o talento extraordinário de Dalton para o conto, suas influências e a relação com a cidade de Curitiba, além de dar dicas para começar a ler o autor. O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura.

Ana Lima Cecilio é formada em filosofia pela USP e trabalha no mercado editorial há mais de duas décadas, tendo passado pelas editoras Cosac Naify, Globo Livros e Carambaia. Ela é curadora da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, e participou do 120º episódio do 451 MHz, junto com o historiador Luiz Antonio Simas, sobre a vida e obra do cronista João do Rio, homenageado em 2024 pela Flip.

Já Caetano Galindo é escritor, tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná. Ele assina a tradução premiada do clássico Ulysses, de James Joyce, publicada em 2012 pela Companhia das Letras. Ele também é autor do romance Lia ( 2024), do livro de não ficção Latim em pó (2023) e da coletânea de contos Sobre os canibais (2019), todos pela Companhia das Letras.

O escritor Dalton Trevisan (Derson Trevisan/Divulgação)

Os dois conversam sobre o talento extraordinário de Dalton para o conto, suas influências, a relação com a cidade de Curitiba e dão dicas para começar a ler o autor. 

O vampiro de Curitiba

A relação do escritor com sua cidade natal, Curitiba, cenário de muitos dos seus escritos, dá início à conversa. De acordo com Galindo, nem todo escritor tem uma relação tão próxima e forte com sua própria cidade como Trevisan tinha com a capital paranaense. 

“Ele transformou Curitiba em Macondo. E destila um tipo de verdade sobre a cidade que a gente só foi entender por conta dele e do que tinha feito”, diz. “É muito difícil diferenciar a Curitiba que ele usou como base da Curitiba que ele inventou. A gente vive no mundo do Trevisan.”

“Ele junta o universo da violência nessa cidade inventada, um cenário mítico para falar de sentimentos muito humanos”, completa Cecilio. 

Muito da ficção de Trevisan vem de notícias de jornal da época, com causos e personagens de sua cidade que ele vinha escrevendo desde a década de 40. “Ele vem de uma geração em que estavam os regionalistas brigando com os urbanos”, diz Cecilio. “Ele consegue fazer uma síntese: Trevisan não é nem regionalista como era o Graciliano Ramos e o Jorge Amado e nem urbano como o Rubem Fonseca.”

O cachorro preferido 

Galindo, que também é curitibano, falou da sua proximidade com Trevisan, conhecido por sua reclusão e rejeição a eventos e entrevistas. “Durante vinte anos, morei a quatro quadras de distância da casa dele”, rememora. O tradutor e escritor nunca deixou de ser um fã e agora organiza a antologia da obra do curitibano para a Todavia ao lado do diretor de cinema Felipe Hirsch. “Encontrava com ele muito frequentemente. Quando adolescente, parei ele na rua uma vez no mercado e outra na esquina da universidade. Ele era muito cortês.” 

Com o passar dos anos, a relação entre os dois foi ficando mais próxima. “Bizarramente, o Trevisan desenvolveu uma fixação pelo nosso cachorro”, conta Galindo. “Eu ficava mandando vídeos do nosso cachorro Leopoldo para ele. Ele adorava receber. Nosso cachorro conheceu muito mais o Dalton Trevisan do que eu.”

Ulysses, de James Joyce

Parte da proximidade se deu porque Leopoldo, o cachorro, foi batizado em homenagem ao personagem do clássico Ulisses, de James Joyce, que Galindo traduziu para o português. Trevisan era um grande fã do escritor irlandês.

Salinger de Curitiba

O escritor também era fã do norte-americano J.D. Salinger. Ana Lima Cecilio definiu o contista como um Salinger curitibano. A semelhança, de acordo com ela, é principalmente pela postura de reclusão de ambos, além das similaridades nas obras. 

“O fascínio pela oralidade, um narrador que parece sempre ser legível em voz alta, parece sempre estar falando com você”, diz Cecilio. 

Nove estórias, de J.D. Salinger

“Acho que Trevisan se alimentou bastante dos contos escritos por Salinger. Ele era um contista, acima de tudo. Alguém que pensou muito bem o conto, a narrativa breve, o desfecho”, completa Galindo. “Ele não é o Joyce, Salinger ou Machado, mas sabia muito bem o que localizar nessas pessoas e como se apropriar dessas coisas.”

“O Dalton está entre os três melhores contistas brasileiros. Os livros dele têm uma moral caótica e anárquica”, diz Cecilio. A escrita do Dalton Trevisan é de uma modernidade e de um audácia muito fascinantes.”

Para ler Dalton Trevisan

Em um convite para os leitores que ainda não conhecem Trevisan, a editora e curadora sugere a leitura da coletânea de contos Ah, é? (Record, 1994): “São textos curtinhos, uma delícia de ler”. E conta que o escritor curitibano “muito intencionalmente” criou um sistema no qual é possível entrar e começar por qualquer lugar. “Qualquer molhadinha de pé para sentir a temperatura já vale.”

Ah é, de Dalton Trevisan

Já Galindo indica Mistérios de Curitiba (Record, 1979) como um bom ponto de entrada à obra de Trevisan. “Um livro de você ler sorrindo do começo ao fim”, diz. 

Mistérios de Curitiba, de Dalton Trevisan

“É muito diferente, é muito impressionante, é muito doentio. Não existe em nenhum outro lugar do mundo. As pessoas não vão conseguir traduzir com o mesmo contato direto que tem para a gente. É um absurdo você não se dar o privilégio de ler Trevisan.”

Mais na Quatro Cinco Um

A vida e a obra de Dalton Trevisan são temas de um artigo escrito na revista dos livros pelo professor Hélio de Seixas Guimarães, organizador da coletânea Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar, lançada este ano pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. “A morte de um grande escritor inaugura sua vida póstuma, potencialmente infinita.”

Ao lado do historiador Luiz Antonio Simas, Ana Lima Cecilio participou do 120º episódio do 451 MHz, sobre a vida e obra do cronista João do Rio, homenageado na Flip deste ano. 

Também este ano, a jornalista e escritora Francesca Angiolillo resenhou Lia (Companhia das Letras, 2024), primeiro romance de Caetano W. Galindo, para a Quatro Cinco Um. Já Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras, 2023) foi resenhado pela escritora Luana Chnaiderman na edição #76, em 2023,.

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma sugestão do Walmir Gois, editor assistente da Ubu. Ele indica Diário de um ladrão, de Jean Genet (Nova Fronteira, 2015), com tradução de Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda.

Diário de um ladrão, de Jean Genet

“No livro, o autor conta desde a infância em uma casa de detenção para menores até a vida adulta de crime e sexo pela Europa. É um romance muito autobiográfico, mas também fantasioso. E eu acho que é isso que é interessante nesse livro”, conta Gois. 

“O Genet não se limita a recompor o passado, criando um universo muito rico em personagens. Esse foi o primeiro livro dele que eu li e o que mais me encantou foi como ele conjuga toda essa violência, da experiência de vida dele, com o lirismo muito refinado que dialoga com o cânone francês. Às vezes a representação gay na literatura é muito decepcionante, higiênica, pouco original. Mas garanto que o Genet não vai decepcionar. Para quem se interessa por gays assassinos, ladrões e traidores, acredito que Diário de um ladrão vai ser um bom passatempo.”

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

CRÉDITOS

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.

Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Mariana Shiraiwa e Mauricio Abbade
Edição e mixagem: André Soares
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]