Memória,
Uma longa vida póstuma, Dalton!
O homem Dalton Jérson Trevisan (1925-2024) passou a vida preparando a imortalidade dos escritos de Dalton Trevisan, o autor
11dez2024 • Atualizado em: 12dez2024A morte de um grande escritor inaugura sua vida póstuma, potencialmente infinita.
Todos os dados que lhe cabia jogar agora estão lançados. Na mesa de trabalho e nas estantes ficarão em suspenso, silenciosas, as palavras que lutou para pôr em seus devidos lugares, em dias de aflição e noites de insônia, eventualmente sentindo a satisfação íntima do clique de uma palavra encaixando perfeitamente em outra. De agora em diante, elas só se moverão por força e obra dos sobreviventes, seus leitores.
Tenho a impressão de que o homem Dalton Jérson Trevisan, que se foi prestes a completar 99 anos e meio (nasceu em Curitiba em 14 de junho de 1925), passou a vida preparando a imortalidade dos escritos de Dalton Trevisan, o autor.
Com os primeiros livros, Sonata ao luar e Sete anos de pastor, ainda da década de 40, deu início a uma das trajetórias mais longevas e prolíficas de um escritor em língua portuguesa. Não me lembro de nenhum outro que tenha vivido tanto, comandando até o fim a configuração e o destino de seus escritos.
Mais Lidas
Em mais de 80 anos dedicados à literatura, escreveu, reescreveu e proscreveu textos seus, reunidos em antologias, que ia desmanchando para compor outras, num jogo de combinações que caberá agora aos seus leitores, editores e críticos, tentar compreender.
Cabe a nós fazermos jus às tantas broinhas de fubá mimoso que ele generosamente nos deixou
Há pouco mais de um mês, surpreendeu a todos dando uma viravolta no destino de seus livros, ao deixar a editora Record, em que publicava há mais de cinco décadas, para se juntar à Todavia, que a partir do ano que vem passará a reeditar seus escritos.
Poucos foram tão fiéis a si mesmos como Dalton Trevisan. Do começo ao fim, compôs um universo literário muito próprio, em torno de cafajestes, prostitutas, tarados, Joões e Marias, uma legião inteira de pobres-diabos construídos a partir da observação e da escuta nas esquinas que Curitiba faz com o universo.
Com um bisturi afiado, dissecou registros colhidos no bas-fond curitibano, nos consultórios de dentista, no noticiário e na literatura de todo o mundo e de todos os tempos, até encontrar o miolo humano, demasiado humano, que expõe para nós com um estilo e uma concisão inconfundíveis.
Faz parte dos grandes inventores do conto contemporâneo, reconhecido pelos principais prêmios literários da língua portuguesa: Jabuti, Machado de Assis e Camões. Ganhou, agradeceu, mas não saiu de casa para receber nenhum deles. Certamente tinha coisa melhor a fazer, ocupado em escrever e reescrever seus contos para a posteridade.
Foi reduzindo suas narrativas ao mínimo, criando miniestórias que lembram aforismos sem qualquer lição de moral. Quando acharam que reduziria suas histórias ao haicai, aproximando-se do silêncio total, saiu-se com uma novela, A polaquinha, que causou espanto no início dos anos 80.
Nos seus escritos, frequentemente estamos diante da observação crua — ora lírica, ora cômica, ora brutal, ora tudo isso misturado — do que também somos e sentimos, mas muitas vezes não sabemos, ou temos dificuldade em admitir.
Veja-se, ouça-se, leia-se isto:
O amor é uma corruíra no jardim — de repente ela canta e muda toda a
paisagem.
E isto:
Guerra conjugal: as mil e uma batalhas da minha, da tua, da nossa Ilíada
doméstica.
E mais isto:
Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete.
O universo de Dalton às vezes pode confundir, levando a pensar que os comportamentos das personagens e narradores criados por ele — que incluem misóginos, racistas, pedófilos, estupradores, pervertidos em geral — coincidem com os valores morais do escritor. Esse, habilidoso e esquivo, construiu-se como personagem recluso, cercado de segredos e mistérios, de modo que não sabemos muito bem quem ele foi.
Dalton fez-se mestre em captar os discursos e valores correntes e dominantes, muitas vezes cristalizados em clichês, estilizá-los e apresentá-los como ficção. Sua literatura é uma chance que ele dá aos seus leitores de desnaturalizar a barbárie e refletir sobre o que achamos que somos, o que somos e o que talvez pudéssemos ser.
Crueldade e humor
A recorrência de alguns temas e tipos também pode levar à ideia, repetida à exaustão, de que sua obra é repetitiva. O escritor não tem culpa de que o Brasil e o mundo parecem girar em falso, quando não retroceder. Mas o que Dalton parece ter captado em sua ficção, entre tantas outras coisas, é a espiral de violência e crueldade que marca a história humana, e não para de dar rodopios cada vez mais perversos, a ponto de agora — isso sim uma novidade — ameaçar a sobrevivência da espécie.
Mas também há humor, muito humor em Dalton Trevisan. Para fechar Gente de Curitiba, até onde sei a última antologia que ele mesmo organizou e fez publicar no ano passado, em edição do autor, escolheu “Doce mistério da morte”. O diálogo de um casal de velhos que não se entende, porque o marido mal pode falar e a mulher já não escuta (“Esse relógio aí parado sou eu.”), termina com a mulher prevendo, depois de desfiar a lista dos parentes próximos que já morreram: “Agora é a minhavez.” Ao que o marido responde, arrematando o conto: “Então vamos juntos. Os dois comendo broinha de fubá mimoso no caixão.”
Agora que Dalton Trevisan não mudará mais nenhuma palavra nem construirá nenhuma nova antologia cabe a nós, seus leitores presentes e futuros, adentrarmos o labirinto e fazermos jus às tantas broinhas de fubá mimoso que ele generosamente nos deixou.
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Sol, sombra
e boas leituras
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.
Porque você leu Memória
A flor necessária
A editora e poeta Sofia Mariutti escreve sobre suas lembranças, poéticas e pessoais, do poeta carioca Armando Freitas Filho, morto nesta quinta (26), aos 84 anos
SETEMBRO, 2024Mais de Hélio de Seixas Guimarães
Monumento a um jovem de 182 anos
‘Dicionário de Machado de Assis’, de Ubiratan Machado, sai em edição revista e ampliada
JUNHO, 2021