Literatura,

Costurando memórias

Escrever a partir de recordações de família é recriar acontecimentos e enfrentar traumas que atravessam gerações, dizem Cíntia Moscovich e Jacques Fux em mesa do FliMUJ

02dez2023 | Edição #76

Deitado no divã para contar sua vida ao psicanalista, o personagem-narrador de O complexo de Portnoy (1969) atravessa as quase trezentas páginas do romance de Philip Roth em um monólogo frenético e cômico em que revisita insólitas histórias de infância e desabafa sobre sua família judia e suas obsessões sexuais, até que na última frase do livro o analista lhe diz: “Bom, agora a gente pode começar?”. A pergunta pode soar desconcertante, mas é uma das melhores sacadas de Roth em todo o livro. Indica que narrar memórias, ou desabafar, é somente o princípio da longa estrada que leva à elaboração da subjetividade e ao encontro de uma identidade.   

Com a pergunta final de O complexo de Portnoy como título, a mesa que reuniu Cíntia Moscovich e Jacques Fux nesta sexta-feira (1º) no FliMUJ, o Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, levou os dois escritores a revisitar memórias familiares das quais retiram a matéria-prima para seus livros. Ao destacar que ambos os convidados exploram traumas transgeracionais em diversas obras, a editora e crítica literária Rita Palmeira — mediadora do encontro e curadora desta educação do FliMUJ junto com o cientista social Daniel Douek — lembrou que dar voz a lembranças tem função terapêutica. 

Para Moscovich, que escreveu Por que sou gorda, mamãe? (2006) a partir de lembranças ao mesmo tempo aflitivas e hilariantes de sua infância e adolescência, encarar a herança genética de parentes com sobrepeso se tornou um caminho para falar de temas como auto-imagem, sentimentos ambíguos e da sua própria identidade como judia, sem abrir mão do característico humor judaico. Durante a conversa no FliMUJ, ela lembrou que uma de suas personagens, a dona Dora, foi inspirada numa imigrante romena judia que vivia no bairro porto-alegrense do Bonfim, reduto de judeus na capital gaúcha. 

A dona Dora real, como a do livro, estocava alimentos em quantidades que despertaram tanto o apetite quanto a reflexão em Moscovich. “Eram latas e latas de leite condensado, sardinha, atum”, contou, provocando risadas na plateia. Longe de ser uma obcecada por comida, a mulher era apenas extremamente precavida: não queria que a família passasse fome se eclodissem no Brasil conflitos armados como os que experimentou na Europa. “O trauma da dona Dora era a guerra”, disse Moscovich. 

Autor de romances como Herança (2022), em que também mescla memórias familiares, construção da identidade e acontecimentos traumáticos, Fux considera que em sua própria família o trauma era o silêncio relacionado à Shoá — palavra hebraica que remete ao genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. “A única lembrança que meu pai tinha do meu avô era que ele não falava”, disse. A ausência de conversas sobre o passado da família levou Fux a provocar o pai, Samuel, a escrever suas memórias. Delas, resultou Meu pai e os judeus da Bessarábia (2023), romance escrito a quatro mãos em que os dois reconstroem ficcionalmente a trajetória do avô e conversam entre si sobre suas origens. “Traumas são transmitidos pelo silêncio. Falar é a maneira de interromper o trauma”, diz Fux.

Alteridade e autoficção

Recorrer a lembranças, para os dois autores, foi também uma forma de perceber o lugar que ocupam no mundo a partir do contato com experiências diferentes das suas. Fux, que cresceu na pequena comunidade judaica de Belo Horizonte, brinca que era uma “criança normal”, como todas as outras. “Tinha um pai e uma mãe judeus, meu irmão judeu, a escola judia, o clube judeu”, enumera e ri da prória “normalidade”. 

Rodeado por muito tempo somente por outras crianças judias, diz que a descoberta da alteridade surgiu junto com a paixão por jogar futebol. “Comecei a jogar e vi aquela galera que, assim, não eram judeus”. E as diferenças não estavam só no convívio social e na religião, como o jovem Fux percebeu durante o banho no vestiário — os outros meninos, afinal, não eram circuncidados. O episódio acabou indo parar em um trecho do seu Antiterapias, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2013.

Para a gaúcha Moscovich, a descoberta do outro veio um pouco mais tarde. A escritora conta que não dava muita bola para o fato de ser judia durante a infância e adolescência, até que se apaixonou e decidiu casar com um não judeu — um gói, como gritou sua mãe ao receber a notícia . “Acontece que ele tinha uma tia carola, que cuidava de uma capela e queria que um padre nos casasse. Perguntei como era e disseram que era só a gente ir na capela e se ajoelhar”. Diante dessa possibilidade, Moscovich disse a plenos pulmões: “Ajoelhar? Judeus não se ajoelham para ninguém!”. Então, encheu a casa de símbolos judaicos para afastar a tia do marido. A consequência, diz ela, é que começou a se enxergar mais como judia.

Não raro, a ficção baseada em memórias recai em autoficção, que tanto Fux quanto Moscovich acreditam estar presente em toda obra literária. Quando escrevemos, diz ela, sempre estamos de algum modo recorrendo a nossas biografias. Mas o que distancia a ficção — ou autoficção — do relato puramente memorialístico é a necessidade de preencher lacunas quando as lembranças são costuradas, acreditam os autores. “A memória é na verdade recriação, ninguém lembra das coisas exatamente como aconteceram”, diz Moscovich. “Nossa memória é fragmentária, então precisamos completá-la”, emenda Fux. “E, às vezes, mentir um pouco”.

Quem escreveu esse texto

Vitor Pamplona

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.