A Feira do Livro, Crítica Literária,

‘Mulheres têm que ser geniais para superar todos os obstáculos para serem publicadas’, diz Betina González

Ao lado da brasileira Andréa del Fuego, escritora argentina falou sobre como mercado ainda invisibiliza a escrita feminina

29jun2024 - 21h08 • 30jun2024 - 14h43
(Filipe Redondo)

Sintoma de um mercado editorial onde mulheres ainda estão sub-representadas, a escrita das mulheres – e a invisibilidade dessa escrita – acabou inevitavelmente sendo o tema da primeira mesa d’A Feira do Livro a reunir duas escritoras. Em uma conversa entre duas amigas que se conhecem há mais de dez anos, a argentina Betina González e a brasileira Andréa del Fuego compartilharam suas perspectivas sobre o fazer literário na mesa Apenas escritoras, neste sábado (29), com mediação de Beatriz Muylaert, editora da Quatro Cinco Um.

González, que acabou de lançar a coletânea de ensaios A obrigação de ser genial (Bazar do Tempo), sobre processos de escrita e os obstáculos enfrentados por autoras no mundo da literatura, contou que a ideia para o ensaio que dá título ao livro veio de um texto do escritor Ricardo Piglia. Ele dizia que quando um escritor está marginalizado, tem a obrigação de ser genial para deixar de ser marginalizado. Então, pensei que é isso que acontece com todas as mulheres escritoras, que têm que ser geniais para superar todos os obstáculos para publicar, disse.

A escritora argentina Betina González (Filipe Redondo)

Ela lembrou que o sistema tem mecanismos invisíveis para que a escrita de mulheres passe despercebida. Os homens não precisam ser geniais, podem ser medíocres e inclusive vão ganhar prêmios. É um lugar que lhes está garantido por serem homens. Clarice Lispector é um caso de uma escritora que chega a esse lugar de genial, mas como exceção. É mulher, mas é boa, mas é genial, é uma anomalia. O mesmo aconteceu com Silvina Ocampo na Argentina.

González foi a primeira mulher a ganhar o prêmio Tusquets, prestigioso prêmio espanhol, feito que é sempre ressaltado pela imprensa, o que ela aponta como sintoma dessa necessidade de ser genial imposta às mulheres, que as isola. Era algo que a incomodava, e que é comentado em um dos ensaios de seu livro, O chocolate mais caro do mundo e eu, mas que ela passou a aceitar. Demorou seis anos para outra mulher ganhar, então talvez tudo bem que digam isso, se isso sensibilizar sobre a forma como se invisibiliza a escrita das mulheres – não de forma intencional, mas porque é assim que funciona o modo de publicação, o mercado editorial.

Questionada por Muylaert sobre o aumento de livros de mulheres publicados nos últimos anos, Del Fuego acredita que é um fenômeno mundial. Acho que isso acontece no mundo todo. Mas, falando aqui do Brasil, o que eu vejo é que não basta mulheres escreverem mais, mas toda a cadeia estar ocupada por mulheres. São mais mulheres editoras, curadoras, capistas, preparadoras, organizadoras de clubes de livros. E também somos mais leitoras. Então eu vejo uma cadeia ocupada. Não sei se isso é um otimismo, mas acho que é um caminho sem volta.

Bloqueio criativo

Instigada por uma pergunta da plateia que mencionava o fato de diversas escritoras dizerem que não acreditam em bloqueio criativo – a própria González havia afirmado isso mais cedo –, e se isso não seria uma característica masculina, a escritora argentina desenvolveu ao vivo uma teoria. Vou roubar. Só sofrem de bloqueio os homens. Não tinha pensado nisso, mas tem um ensaio de Harold Bloom que fala sobre a ansiedade da influência” – a dificuldade dos escritores escreverem sob o peso de quem veio antes.

A ansiedade da influência é masculina, porque a escrita das mulheres sempre teve que se dar na obscuridade, longe dos olhos de todos. Então acho que sim, que assim como a ansiedade da influência, o bloqueio também é masculino, teorizou. Nós temos outras questões, temos por exemplo essa pressão de sermos geniais. Essa grande exigência é mais das mulheres. E o bloqueio é dos homens. ‘Tantas coisas que posso fazer: o futebol; posso caçar um tigre, como Hemingway; tenho milhões de mulheres para conquistar‘. Então, é por isso que essa página não sai, brincou.

(Filipe Redondo)

González também falou sobre outro tema presente em seu livro: como escrever sobre a violência contra as mulheres. “Falo [no ensaio ‘A menina na cédula de dez pesos. Notas sobre escrita e violência de gênero] sobre como eu gostaria escrever sobre esse tema, e por isso abandonei esse livro, porque não consegui fazer. Acho que é um tema muito difícil. Como escritora, sempre penso que a ficção tem que fazer uma intervenção estética e política na realidade. Então me incomodavam livros escritos como relatos jornalísticos, acho que isso não é fazer uma intervenção, porque estamos muito acostumados com a escrita jornalística. Para escrever sobre esse tipo de violência teria que encontrar um modo de ir contra esse discurso do jornalismo.”

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Natalia Engler

É jornalista e pesquisadora de comunicação e gênero.