Crítica Literária,

Escreva, maldito, escreva!

Lançamento da coletânea ‘Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar’ destacou a versatilidade do ‘Vampiro de Curitiba’, que, aos 99 anos, participou remotamente

14jun2024 - 17h27 • 17jun2024 - 09h43
Escritores, professores e espacialistas na obra de Dalton Trevisan durante lançamento de coletânea na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na USP (BBM USP/Divulgação)

Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar chegou como uma festa na noite da última quarta-feira (12), na Universidade de São Paulo (USP), como definiu o poeta e professor Fernando Paixão. O e-book, uma parceria da Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, e do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, foi lançado dois dias antes do aniversário de 99 anos do escritor curitibano, famoso pelo epíteto de “Vampiro de Curitiba”, título de um dos seus romances, publicado em 1965, um dentre vários clássicos da literatura brasileira que escreveu, como Cemitério de elefantes (Record, 1980).

A fortuna crítica sobre a obra de Trevisan, em livro, chama atenção pela pluralidade de ideias e pela presença de críticos de diferentes gerações. Organizada por Paixão e pelo também professor da USP Hélio de Seixas Guimarães, o livro conta com textos de Michael Wood, Eliane Robert Moraes, Alcides Villaça, Bruno Zeni, Arnaldo Franco Júnior e Jorge H. Wolff, além dos organizadores. Entre os ensaios, há também uma entrevista com a mais relevante intérprete da literatura do escritor, Berta Waldman, e um conto inédito de André Sant’Anna.

A sessão foi marcada por leituras e comentários de nomes ligados à obra de Trevisan ou influenciados por seus escritos, como Alcides Villaça, Amara Moira, Andréa Del Fuego, Reinaldo Moraes e Rodrigo Lacerda. A mediação ficou por conta da curadora da edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, Ana Lima Cecilio, e de Fabiana Faversani, editora que trabalha diretamente com Trevisan e que informou aos presentes da participação remota do “Vampiro de Curitiba”, avesso a aparições públicas, que acompanhava o lançamento transmitido pelo Youtube.

Em quase oitenta anos de carreira, Trevisan construiu uma trajetória singular na literatura brasileira por reeditar constantemente os próprios escritos. Desde Sonata ao luar (Record), o primeiro título, publicado em 1945, consolidou uma visão insólita do cotidiano curitibano, trabalhando com os temas da bestialidade do homem, do sexo, e da frustração humana, apropriando-se de elementos do kitsch e trafegando entre o realismo e o expressionismo narrativo, conforme aponta Zeni em seu ensaio “Vampiros antes do vampiro”. 

Algumas edições da obra de Dalton Trevisan no acervo da USP (BBM USP/Divulgação)

Na abertura, os organizadores destacaram a aquisição de 44 novos títulos do autor. Segundo Hélio de Seixas Guimarães, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), que sediou o evento, recebeu a doação de uma coleção rara do jornal Tinguí composta de 41 cadernos que o escritor enviou a amigos pelo correio no início dos anos 40, além de 21 traduções de seus livros para idiomas como o inglês e o espanhol. “Abre-se uma nova frente de pesquisa de Dalton Trevisan na BBM”, disse.

Paixão destacou a importância do volume, que possibilita uma série de novos debates críticos sobre a obra de Trevisan. “Estamos comemorando hoje o livro nove anos depois do colóquio [sobre o autor] de 2015. Ao longo dos anos, a ideia deste livro foi se solidificando: e, nos 99 anos de Dalton, a publicação se sustenta por si”, destacou sobre a diversidade de vozes presentes. 

“As obsessões do Dalton Trevisan se afirmam e reafirmam a cada livro”, pontuou a mediadora Ana Lima Cecilio sobre a marca do escrita de Trevisan no conto brasileiro, para além “do lugar-comum daquele eremita que fica encastelado em sua casa”. “O universo de Dalton, delirante e criativo, fala muito do mundo real. Essa medida de olhar para a realidade e criar um universo é impressionante.”

O vampiro vai à rua 

Não raro fotografias tiradas furtivamente e registros engraçados de outros escritores sobre a figura de Dalton Trevisan contribuíram para que se formasse o retrato de um homem fantasmagórico e sisudo. Paixão, que teve a oportunidade de almoçar com o autor em Curitiba e conhecer a famosa casa de esquina onde morou por décadas no Alto da Glória, trouxe histórias engraçadas que desfazem o mito de um Trevisan casmurro.

“Em uma zona do meretrício, ele se fez passar por um tal de José Paulo Paes”, contou o professor, aos risos, referindo-se ao poeta, tradutor e editor, autor de Prosas seguidas de odes mínimas (Companhia das Letras). À época editor da Ática, Paixão lembrou a estripulia do amigo em comum em um almoço com Paes, tempos depois: “Em Curitiba, você anda muito mal falado”.

O mito do ermitão se desfaz, afirmou o professor, que lembrou outros grandes interlocutores do curitibano, como Otto Lara Resende, Pedro Nava e o próprio José Paulo Paes. “Dalton é um inventor da linguagem, de tipos peculiares. Não participou de grandes círculos literários, embora seja um missivista ativo. Não conheço outro caso de um autor especialista em si mesmo com tanto humor e sagacidade como ele. Os tipos curitibanos estão impressos em sua literatura”, observou Cecilio. 

Destacando a gratidão do Vampiro com os autores que o homenagearam, a editora Fabiana Faversani leu uma carta inédita de Trevisan, escrita especialmente para a ocasião. “Os ensaios são primorosos, como o som de uma única mão que bate e aplaude. Em todas as posições, diante do espelho, aos berros, me causaram arrepios lancinantes no céu da boca. Sinto-me, aos 99 anos, mal vividos e bem sofridos, uma alcachofra de folhas chupadas, considero-me um guerreiro que matou o próprio cavalo para fugir diante do inimigo, compelido a fazer o caminho de volta a pé”, dizia o texto.

E, mais adiante na mensagem, o autor fez um balanço sobre sua extensa obra. “Quando pergunto se tudo valeu a pena? Escreva, maldito, escreva! Escrevi setecentos contos, escreva primeiro e se arrependa depois! Depois de ler estes ensaios, me arrependo um pouco menos.” 

Andréa Del Fuego sublinhou que a literatura de Trevisan é uma oficina de escrita permanente. “É de um pensamento editado. Eu gosto muito da velhice no tema das artes e dos livros”, disse a autora de A pediatra (Companhia das Letras, 2021), que leu o conto “Dois velhinhos”, publicado na coletânea Mistérios de Curitiba.

“Leio como uma charge literária, uma obra de alguém que, com uma linha, consegue fazer um universo”, destacou Del Fuego, que definiu o conto como uma “escultura da solidão”. Para o escritor Reinaldo Moraes, que também participou com uma leitura, a celebração foi um momento de redescoberta. “Depois de quase cinquenta anos, consegui ver como ele consegue estabelecer um clima sórdido. Sem utilizar palavrões, gírias localizadas. Sua literatura é uma trepada gráfica, uma coreografia do ato sexual que vai se tornando surreal”, descreveu o autor de Pornopopéia (Companhia das Letras, 2009), tirando risos da plateia. 

Novas edições

Atual editor de Dalton Trevisan na Record, Rodrigo Lacerda comentou sobre as novas edições de três clássicos do autor. Cemitério de elefantes, que firmou Dalton Trevisan como um dos grandes nomes da literatura brasileira, retornou às prateleiras com texto de orelha do argentino César Aira. 

Macho não ganha flor, um dos últimos títulos do autor, publicado em 2006, ganhou texto de orelha do professor da USP Augusto Massi e uma quarta capa de Caetano W. Galindo. E Contos eróticos, antologia organizada pelo próprio autor com alguns de seus contos mais emblemáticos, volta com uma orelha escrita por Fernanda Torres e uma tirinha inédita de Laerte.

“Depois de Antologia pessoal, lançada em 2023, a editora prepara uma grande retrospectiva da carreira do autor: várias coletâneas que atravessam a obra inteira, todos os temas”, destacou Lacerda. “Foi trabalhando nesse livro que percebi que o Dalton é como um João Gilberto da literatura, pela busca infinita pela perfeição de cada texto. As antologias viram livros novos várias vezes. O conto muda, os parágrafos são cortados, Dalton é constantemente retrabalhado. Suas antologias têm um gosto de lançamento novo.”

Várias faces 

Conhecido pela faceta erótica e a prosa muitas vezes desconstruída e experimental, Trevisan foi colocado no rol de autores marginais, que versam sobre as delícias e dores do prazer. Neste novo capítulo editorial de fortalecimento do legado de Trevisan, no entanto, a editora Record aposta na versatilidade do autor. 

Durante a conferência, Lacerda mostrou, com exclusividade, o projeto gráfico de “Chuva”, conto adaptado com ilustrações do artista Eloar Guazzelli para uma publicação infantil. O objetivo é superar barreiras etárias e estilísticas da literatura do escritor. Outro conto, intitulado “O ciclista”, também será editado para o público infantil, com ilustrações de Odilon Moraes. 

Para além da readaptação de capas e edições, o lançamento de Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar foi também pautado pelo debate de como a subversão marcou a obra do curitibano, tocando em tabus sociais e sexuais. 

“Alguns textos do Dalton mexem com lados estranhos da nossa existência”, disse a escritora Amara Moira, que leu o conto “O bem amado”, reescrito e publicado como “Boa noite, senhor” em Novelas nada exemplares (Record, 1959), uma narrativa de teor homossexual de Trevisan que foi renegada, segundo a autora. 

Ao trazer esta zona de interesse que ficou às sombras, Moira ressaltou a incapacidade da comunicação dos dois homens em um encontro furtivo. Esta dúvida fortalece a chamada “construção do vazio”, marca da literatura de Trevisan. Para falar sobre o tema, o professor da USP, poeta e crítico Alcides Villaça abordou o papel da solidão na carreira e no ofício literário do escritor. 

Villaça discorreu sobre a fase mais recente do escritor no ensaio “Notas para um penúltimo Dalton Trevisan”, presente no livro. O crítico apontou como o autor, nos últimos anos, foi capaz de “lapidar do cotidiano bruto das múltiplas criaturas, pervertidas umas, vítimas outras, todas sofridas no emaranhado dos bastidores de sua cidade, Curitiba”. Há mais de meio século o acadêmico investiga a prosa do escritor como um observador a olhar pela fresta uma certa indecência — envolvente e excitante. 

Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar está disponível gratuitamente para download na página oficial do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Quem escreveu esse texto

Matheus Lopes Quirino