Cinema,
A memória de quem fica
Novo filme de Walter Salles, ‘Ainda estou aqui’ adapta romance de Marcelo Rubens Paiva e retrata o desaparecimento do pai do escritor pela perspectiva de sua mãe
07nov2024A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa.
No prólogo de seu livro Ainda estou aqui (Alfaguara), Marcelo Rubens Paiva faz uma profunda reflexão sobre a memória a partir do dia em que ele e a mãe foram a um cartório em São Paulo, em janeiro de 2008, para oficializar a interdição legal de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, então com 77 anos e sofrendo consequências do mal de Alzheimer. Anota ele:
Naquela tarde abafada (…), primeiro provisoriamente e depois definitivamente, aquela que cuidou de mim por quarenta e oito anos seria cuidada por mim. O referido é verdade e dou fé.
Ainda que tenha se tornado um fenômeno editorial com o romance Feliz ano velho (Alfaguara), lançado em 1982, no qual trata do acidente que o deixou paraplégico aos vinte anos de idade, Marcelo Rubens Paiva só foi tratar literariamente das próprias origens, da relação com a família e da fantasmagoria do desaparecimento de seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, nos porões da ditadura militar ao escrever Ainda estou aqui, lançado em 2015. Foi do encanto com a leitura desse misto de crônica íntima, autobiografia e devaneios pessoais que o cineasta Walter Salles decidiu plantar ali a semente de seu próximo filme de ficção.
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Um dos diretores brasileiros mais conhecidos no mundo, premiado em 1998 com o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim por Central do Brasil, que ainda rendeu a Fernanda Montenegro a indicação ao Oscar de melhor atriz em 1999, Salles não fazia uma obra ficcional desde 2012, quando levou às telas o clássico da contracultura de Jack Kerouac On the Road. A leitura de Ainda estou aqui se deu na época do lançamento do livro e redespertou o realizador.
O encanto com esse misto de crônica íntima, autobiografia e devaneio foi a semente para o novo filme de ficção do cineasta
“Não é todo ano que surge um livro como esse do Marcelo, algo luminoso não só por resgatar a memória pessoal e familiar do autor, mas também por retratar a história do Brasil ao longo de várias décadas”, disse Salles, numa entrevista à imprensa em São Paulo no dia 18 de outubro na qual a Quatro Cinco Um esteve presente. “A sobreposição entre pessoal e coletivo é algo que sempre me interessou e aparece ainda mais potente no livro do Marcelo, principalmente porque, ao longo daquela autodescoberta, ele constata que a mãe foi a personagem central de toda essa história”.
Parte da história
A curiosidade de Salles na relação entre público e privado está em outro aspecto da escolha por adaptar Ainda estou aqui. Na pré-adolescência, o jovem Walter era amigo de uma das quatro irmãs de Marcelo e frequentou a casa da família Paiva, à beira-mar do Rio de Janeiro. Por conhecer parte daquele cotidiano, ele inseriu recordações suas na primeira parte do filme e fez de si mesmo parte da história, ainda que na posição de testemunha indireta. “Eu quis fazer a casa ser uma personagem e tinha o desejo de reabrir aquele espaço e compartilhá-lo com o público”.
Rubens Paiva nasceu em Santos em 1929, era engenheiro de formação e assumiu vaga de deputado federal pelo PTB de São Paulo em 1962. Ficou na função por menos de um ano, quando foi cassado pelos militares depois do golpe de 1964. Exilou-se em países da Europa e da América Latina até voltar ao Brasil alguns anos depois e ir morar com a família no Rio de Janeiro. Afastou-se da política oficial, mas manteve atividades clandestinas de apoio a quem se arriscava contra a ditadura. Tinha 41 anos quando, em 20 de janeiro de 1971, agentes do regime bateram na sua porta e o levaram escoltado para nunca mais voltar.
Se, no livro, seu filho Marcelo Rubens Paiva vai e vem numa miríade de elementos para tratar do sumiço do pai, a opção de Walter Salles no filme é a de condensar o drama sob o ponto de vista de Eunice Paiva, a matriarca da família, interpretada por Fernanda Torres, e a devastação provocada pela captura do companheiro, vivido por Selton Mello. Desloca-se a ação do ponto de vista do autor, a instância narrativa essencial do livro, para olhar com certa distância a trajetória daquela mulher e seu mergulho no inferno a partir do momento em que perde o marido, é deixada com cinco crianças e precisa enfrentar a teia burocrática que a impede de administrar as finanças porque não consegue provar que está viúva.
A partir dessa base, Salles buscou o trabalho de dois roteiristas, Murilo Hauser e Heitor Lorega, para esculpir a estrutura dramática e narrativa de Ainda estou aqui. Hauser já tinha feito a transposição de A vida invisível de Eurídice Gusmão (Companhia das Letras), de Martha Batalha, para um filme de Karim Aïnouz lançado em 2019. Agora se deparava com um relato íntimo e real para extrair o recorte de um ponto de vista mais centralizado.
“Tratar da decantação da memória não é algo rápido e por isso levamos sete anos para fazer esse roteiro. Só chegamos ao resultado graças ao talento do Murilo e do Heitor, que nunca deixaram de buscar a forma mais justa de retratar aquela família, a autenticidade solar dos primeiros trinta minutos e o impacto e dor que a ausência do Rubens Paiva ecoa depois”, exaltou Salles.
O processo de Hauser e Lorega se expandiu para além do livro, justamente pela escolha de ter Eunice como protagonista. Para chegarem ainda mais perto dessa mulher, morta aos 86 anos em 2018, a dupla conversou com amigos e conhecidos de antes da época em que Rubens Paiva foi levado, no intuito de captar a atmosfera da casa nos dias anteriores ao pesadelo.
“Os relatos sobre a Eunice eram de que ela era uma mulher íntegra de personalidade muito consolidada. Foi lindo juntar várias Eunices que surgiram pra gente e então poder construir essa que se tornou a da Nanda [Fernanda Torres] dentro do filme”, disse Hauser na entrevista em São Paulo. “Expandir aquele mundo para além da casa da família e tratar daquela mulher tão única e imprevisível foi fundamental para achar o que queríamos colocar em cena”.
Adaptação
Marcelo Rubens Paiva disse estar acostumado a ver escritos seus adaptados, não apenas porque outros livros de sua autoria viraram filmes (casos de Feliz ano velho em 1987 e Malu de bicicleta em 2010), mas por compreender a diferença entre as mídias e expressões. “Quando um autor publica uma obra, ele deixa de ser seu único proprietário. A obra começa a ganhar a interpretação do leitor, que tem a liberdade de ler da forma que quiser, imaginar como são os personagens, criar os cenários”, afirmou o escritor. “Ao adaptar, é preciso escolher um eixo, uma coluna vertebral. Não dá para falar de tudo. Toda adaptação passa pela subtração, como a Fernanda Torres disse. Qual seria esse eixo foi o que mais conversamos sobre o roteiro de Ainda estou aqui.”
Autor e diretor estavam em sintonia, assim como os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega. “Eles foram geniais. Não só se basearam no conteúdo do livro, mas nas informações das minhas irmãs, nas minhas próprias contribuições e nos relatos de amigos dos meus pais. Muitas cenas do filme não existem no livro, mas fazem parte da história real que foi sendo reconstruída na feitura desse roteiro”. Essa artesania foi reconhecida em setembro de 2024, quando Ainda estou aqui venceu o prêmio de melhor roteiro na competição do 81º Festival de Veneza. “Fico muito emocionado ao olhar esse filme hoje, perceber a emoção que ele provoca e pensar que, afinal, é um filme sobre a minha mãe”, disse Marcelo.
Figura central em Ainda estou aqui, Fernanda Torres voltou a ser atriz de Walter Salles quase trinta anos depois de fazerem juntos Terra estrangeira (1995). Para além desse reencontro, o filme de Salles tem uma pequena participação de Fernanda Montenegro interpretando Eunice na velhice, o que coloca mãe e filha da vida real num único corpo ficcional atravessado pelo tempo e pelas lembranças. “A Eunice nunca buscou reconhecimento. Por muito tempo ela foi ‘a viúva do Rubens Paiva’ e depois ‘a mãe do Marcelo Rubens Paiva’, mas sempre moveu revoluções com dignidade e resistência”, contou Fernanda Torres. “Nas entrevistas dela que serviram de material mais palpável para eu vê-la e conhecê-la, sempre tinha um sorriso e uma firmeza que dobravam quem estivesse com ela, sem abrir mão da convicção.”
Se o escritor vai e vem numa miríade de elementos para tratar do sumiço do pai, o cineasta condensa o drama sob Eunice Paiva
Fernanda relembrou que o sorriso como símbolo de luta e convicção foi o traço mais difícil de capturar. “Eu acho que sou mais bruta que a Eunice. Lembro de fazer algumas cenas e então o Walter me chamar e dizer: ‘Está faltando o sorriso dela’. Isso foi me ajustando na proximidade com essa personagem”. A filmagem em ordem cronológica do roteiro permitiu à atriz também se envolver com a própria dramaticidade da história. “No início vemos uma dona de casa no meio dos anos 50, inteligente, mas vivendo o papel de esposa e de mãe, servindo café, pondo os filhos para dormir, tutelada pelo marido… A tragédia rompe com aquele mundo idílico à beira-mar de amigos e festas e tudo isso se intensificou na filmagem cronológica porque, depois da cena em que o Selton é levado, nos demos conta de que ele não voltaria mais, e nós da equipe íamos ter que lidar com isso”, relembrou.
Para Selton Mello, a presença de Rubens Paiva no primeiro terço do filme tem a importância de construir os alicerces para sua ausência posterior ser sentida intensamente. “Minha missão era iluminar espiritualmente toda essa parte. Walter é um mestre nas delicadezas e conduziu tudo de forma muito precisa e elegante, o que fez com que aquela viagem pessoal dele como criador fosse se tornando uma viagem também de todos nós que estávamos ali envolvidos”, contou o ator.
Depois do sumiço do marido e das dificuldades financeiras, Eunice Paiva voltou a morar com a família em São Paulo. Formou-se em direito no Mackenzie e virou referência em causas indígenas e lutas sociais. Como descreve o filho no livro Ainda estou aqui: “foi advogada de ilustres e desconhecidos, foi consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU”. Também graças à advocacia, Eunice conseguiu, 25 anos depois da captura de Rubens Paiva, emitir um atestado de óbito que oficializava a morte dele. O longa de Walter Salles retrata esse momento simbólico ao reencenar uma declaração de Eunice à tv na qual ela celebra a triste ironia de enfim poder lidar oficialmente com o fato de que o marido estava morto.
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Com roteiro coassinado por Elena Ferrante, série A amiga genial reacendeu nostalgia de leitores trazendo ânimo convulsionado à amizade de Lila e Lenu
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