Difusão da leitura em debate

A Feira do Livro,

Difusão da leitura em debate

Em série de seminários d’A Feira do Livro, educadores e autores compartilharam perspectivas sobre o fomento do livro e da leitura entre jovens no Brasil

04set2024 • Atualizado em: 05set2024
(Matias Maxx)

Em 2024, A Feira do Livro estendeu sua duração de cinco para nove dias, ocupando a praça Charles Miller, em São Paulo, com programação não só nos finais de semana. De segunda a sexta-feira, 1° a 5 de julho, o evento realizou a série de seminários Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, que reuniu educadores, professores, mediadores, editores, escritores de literatura brasileira e infantojuvenil e outros profissionais do meio para discutir políticas do fomento à leitura entre jovens e avaliar avanços e obstáculos da difusão do livro no país. 

Dois temas foram recorrentes nos cinco debates: leituras necessárias nos dias de hoje — histórias sobre o clima, livros de autores negros e com personagens mais diversos, e literatura feita por mulheres — e o desafio da tela.

Leituras necessárias

No primeiro dia do seminário, a escritora gaúcha Morgana Kretzmann e a educadora Ana Carolina Carvalho, mediadas pela pesquisadora Dianne Melo na mesa “Ler na tempestade”, conversaram sobre a necessidade de encontrar as palavras em meio às catástrofes climáticas e às crises humanitárias.

A escritora gaúcha Morgana Kretzmann e a educadora Ana Carolina Carvalho (Matias Maxx)

Kretzmann lançou Água turva (Companhia das Letras) algumas semanas antes das enchentes do Rio Grande do Sul, e enfatizou a urgência de enfrentarmos a crise do clima. Seu romance descreve o protagonismo de três mulheres líderes de comunidades na fronteira entre o Brasil e a Argentina contra a construção criminosa de uma hidrelétrica em área preservada no extremo sul do país. “O Rio Grande do Sul realmente virou uma água turva durante semanas, mas essa ‘água turva’ não era apenas ambiental, era política também”, disse Kretzmann.

Tratar de questões sociais brasileiras por meio da ficção é recorrente, e Kretzmann acredita que é preciso mais do que objetividade para construir narrativas. “Precisamos de uma utopia ecossocial, ou utopia ecológica, que nos faça voltar a sentir afeto pelo planeta”, disse a escritora. “Podemos desenvolver uma consciência planetária que nos dê esperança de que o mundo pode ser saudável novamente.” 

A pedagoga Ana Carolina Carvalho citou ainda o poeta Fernando Pessoa, dizendo que a literatura é necessária em tempos de crise porque só a vida não basta e é preciso conhecer outras formas de viver, outros caminhos e novas geografias criadas após crises. “Seria insano passar o tempo todo na dureza da vida, na vida dura. Ou passar o tempo todo procurando cumprir funções, sem espaço para imaginação e sonho. Não conseguimos sem o sonho, a ficção, o romance, o conto, a crônica”, disse a educadora.

Estratégias antirracistas

A recuperação do atraso histórico de narrativas negras entre o público infantojuvenil foi o tema do seminário da quarta-feira, na mesa “Literatura negra: estar na estante é o bastante?”, que reuniu os escritores Renato Gama e Waldete Tristão em um diálogo sobre a ação de educadores e projetos educacionais que buscam transformar a sociedade brasileira a partir de estratégias antirracistas.

A professora Iracema Nascimento, a professora e escritora Waldete Tristão e o educador e escritor Renato Gama (Matias Maxx)

Mediada pela professora da Faculdade de Educação da USP Iracema Nascimento, a conversa girou em torno dos livros Neguinha, sim! (Companhia das Letrinhas), de Gama, e O quintal das irmãs (Pequena Zahar), de Tristão, que exploram episódios da infância de crianças negras para além de situações em que vivenciam o preconceito e racismo. “Infâncias são coletivas, mesmo que tenham origens distintas”, disse a pedagoga.

Gama contou que uma professora o apresentou O estrangeiro, de Albert Camus, na adolescência. “Ela me disse que eu seria o estrangeiro em todos os lugares que eu pisasse. Como eu poderia ser o estrangeiro se no meu bairro todo mundo era preto como eu? Só fez sentido quando comecei a ter acesso a lugares em que a maioria era branca”, relembrou.

Tristão falou sobre como histórias podem e devem ser mediadas por todos, mesmo que seja um professor ou educador branco mediando literatura infantojuvenil negra. “O importante é fazer boas escolhas”, disse, ressaltando a importância de autores e personagens negros. “Não tínhamos referências de pessoas como nós nos livros infantis. Me tornei professora para poder contar essas histórias aos meus alunos e a outras crianças.”

Outro encontro do seminário focou na nova lista de leituras obrigatórias da Fuvest (vestibular da Universidade de São Paulo), que, pela primeira vez, é composta integralmente por livros de autoras mulheres. A decisão, repercutida em dezembro de 2023, teve recepção mista, com críticas acusando a escolha de ter sido baseada somente em pautas identitárias.

A educadora Janine Durand, a editora e professora Fernanda Sousa e a gestora de educação Lara Rocha (Matias Maxx)

“Só se torna ‘identitário’ quando a lista é 100% composta por mulheres. Por anos as listas reuniam apenas homens brancos e isso não era considerado identitarismo”, criticou a educadora e gestora de educação Lara Rocha, que conversou com a editora e professora Fernanda Sousa na mesa “Leitura obrigatória”.

Com mediação da educadora Janine Durand, as convidadas debateram a seleção das obras, a interpelação do cânone literário e uma nova fase para a promoção da literatura feita por mulheres. Até hoje, apenas cinco mulheres estiveram nas listas de outros anos.

Na nova seleção, que entra em vigência para a Fuvest 2026 e vai até a edição 2029, figuram nomes como Clarice Lispector, Conceição Evaristo e Sophia de Mello Breyner Andresen. “Com essa nova lista que vai na contramão do hegemônico, há o efeito transformador para os leitores que estão nas periferias”, disse Sousa, citando benefícios  como equidade, inclusão e igualdade. “A universidade mudou, mas há quem pense que já fez muito ao ‘deixar’ que outros perfis entrassem. O fim desses mundos para alguns é o começo de mundos para vários outros.”

Desafio da tela

Como atrair jovens leitores em tempos de hiperconectividade foi uma dificuldade discutida em outros dois encontros do seminário. A mesa “A solidão do livro, a solidão da tela” uniu Debora Vaz, especialista em educação e diretora pedagógica do colégio paulistano Santa Cruz e Aline Frederico, pesquisadora em literatura infantojuvenil e professora de editoração na Escola de Comunicação e Artes da USP. As duas debateram  sobre os desafios que o uso excessivo de tecnologias pode impor à escrita e à leitura de qualidade entre crianças e adolescentes, seja na sala de aula ou em casa.

Aline Frederico, professora de editoração na ECA-USP, e Debora Vaz, diretora pedagógica do colégio paulistano Santa Cruz

Mediadas pela educadora Patricia Auerbach, as educadoras falaram sobre como a hiperconectividade atinge todas as faixas etárias, ao mesmo tempo que, entre os jovens, parece ter afetado a desenvoltura nas relações humanas.

Segundo Frederico, outro efeito da hiperconectividade é a queda do ritmo de leitura em todas as idades. Por outro lado, sugeriu que o uso de e-books e outros formatos de leitura pode ampliar o público de leitores. “Pesquiso leitura digital e sei que, em relação à leitura, o livro físico continua sendo o melhor formato. Mas o digital chega a lugares onde o impresso ainda não chega. Ele é mais democrático.”

A última palestra do Seminário Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas abordou o papel dos professores, figuras centrais para a formação de leitores e que costumam ficar em segundo plano quando o debate é sobre sua própria formação. A mesa “Formar leitores, formar professores” reuniu a professora de literatura e crítica literária Diana Navas e a professora e formadora de professores Ana Barbara dos Santos, mediadas por Marisa Lajolo, pesquisadora, crítica literária, professora e escritora. Para Lajolo, a formação se faz pela leitura múltipla de todos os tipos de livros. “As obras devem ser discutidas por outros profissionais de educação, tecendo uma rede de conversa.”

A pesquisadora e crítica literária Marisa Lajolo e as professoras Diana Navas e Ana Barbara dos Santos

Diana Navas refletiu sobre quem era como leitora e como professora. “Aprendi muito mais sobre igualdade, acesso e liberdade, com Dom Quixote do que com compêndios sobre esses temas. Como professores, devemos nos perguntar qual livro nos formou como leitor, porque isso diz sobre como formaremos outros leitores”.

A forma como o universo digital vem se aproximando das escolas — e o embate entre os meios impressos e digitais no fomento à leitura — foi outro ponto da conversa. Segundo Ana Barbara dos Santos, a experiência com o livro ainda está muito firmada no campo sensorial, e o objeto dá conta de uma complexidade que o digital não alcança. “Um livro físico não se faz somente com a parte textual, há a parte gráfica, a ilustração, o design. O professor precisa ter repertório para analisar outras linguagens e outros tipos de leitura.”.

Seminário Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas foi realizado com o apoio oriundo da Emenda Parlamentar 2023.066.50456 – Demanda 060460.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.