Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Balada dos humilhados

Ver aquele PM apoiar todo o peso do corpo sobre a vítima em Parelheiros, São Paulo, seria a gota d’água que faltava para acordar toda uma nação

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Acredito que muitos dos leitores deste espaço, tal como eu, cresceram numa era em que para sobreviver na urbe era necessário termos sido abençoados com uma das seguintes qualidades: ser fisicamente bonito, ter talento para lutar ou saber xingar, injuriar, roast ou estigar, como dizemos em Angola. E, pela minha experiência, talento para estiga foi sempre melhor do que saber infligir dor física a alguém. No meu tempo de liceu, os estragos que a estiga poderia provocar na autoestima de determinado adversário sempre foram mais temidos que qualquer bofetada. E no domínio das estigas, quase tudo é permitido. Podíamos humilhar a família inteira, incluindo os animais de estimação, menos xingar a mãe. Já assisti à mais pacífica das almas sair arremessando socos e pontapés violentíssimos só porque alguém estigou a sua mãe e isso era inadmissível. Até mesmo quando a mãe não nos pertencia, a pressão da audiência era tão grande que, ainda que não quiséssemos, éramos coagidos a defender a honra da nossa santa mãezinha mesmo que significasse perder o combate.

Em julho morreram dois activistas do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, o reverendo C. T. Vivian e o político John Lewis. As redes sociais se encheram de imagens que passam em revista os momentos mais marcantes do percurso desses homens corajosos que marcharam ao lado de Martin Luther King, nas inúmeras batalhas travadas em defesa da dignidade humana. Imagens que também trazem à tona as incontáveis humilhações pelas quais passaram e que agora em 2020 gritam ainda mais alto. 

O sr. Vivian, quinze anos mais velho do que o sr. Lewis, viveu quase um século. Os dois viram e sentiram na pele tudo o que de mais humilhante o racismo consegue produzir, e só isso deveria ser motivo para nos deixar envergonhados, mas o efeito é pior. Ao deparar-me com uma fotografia a preto e branco tirada a 7 de março de 1965 em Selma, no Alabama, pus-me a fazer contas. Na imagem, um agente da polícia estadual interrompe com violência uma marcha pacífica pela votação dos direitos civis. O agente arremessa o bastão e fractura a cabeça de John Lewis curvado no chão. Essa fotografia poderia ter sido tirada em Los Angeles em 1992, em Baltimore em 2015 ou em Minneapolis em 2020. 

A única vez em que ergui os punhos contra alguém foi após uma humilhação insuportável. Um colega de escola no quinto ano do liceu xingou o nome da minha família e não tive outro remédio que não lutar. Perdi. As outras vezes em que me envolvi em confrontações físicas foram com o meu irmão, e aqueles que têm irmãos sabem ao que me refiro quando digo que esse tipo de confrontação é totalmente natural e não conta para a estatística das vezes em que andamos à porrada a sério. Já sobre as vezes em que quase andei à porrada, também não contabilizo mais do que uma ocasião. 

No momento em que uma cidadã é humilhada e opta por não revelar o nome com medo de represálias, é hora de a sociedade reavaliar os códigos morais que a regem

Vivia então num apartamento no centro de Lisboa quando certo dia acordei com um barulho estranho vindo da sala, o som de um objeto pesado caindo sobre o soalho. Levantei e me surpreendi com um ladrão dentro de casa, com a mão numa das caixas de discos. A miopia não me permitiu reagir com a devida rapidez, aquela imagem era toda ela tão absurda que levei uns segundos até recuperar do choque, procurar os óculos e um objeto suficientemente ameaçador para expulsar o invasor. Mas aconteceu tudo tão rápido que quando voltei à sala, convencido de que iria interromper o meu jejum de andar à porrada, com os óculos postos, os punhos em posição de combate (não havia encontrado nenhum objeto que metesse medo), o sujeito já tinha evaporado, deixando-me pendurado com o coração aos pulos de tanta coragem ou adrenalina — que não são a mesma coisa, mas que, de acordo com a circunstância vivida, se confundem e servem de combustível para a nossa ira.

Gota d’água

Viralizou um vídeo que mostra uma mulher deitada de bruços, no meio-fio, ao lado de um carro e sendo imobilizada por um agente da polícia militar que pisa em seu pescoço em São Paulo. As imagens perturbadoras seriam suficientes para fazer ferver o sangue de qualquer um. Ver aquele agente da PM apoiar todo o peso do corpo sobre a vítima seria a gota d’água que faltava para acordar toda uma nação. Quando um agente de polícia cujo salário é pago pelos impostos de todos agride uma mãe, não interessa quem tenha lançado ou levado a bofetada, não importa se aquela pessoa é mãe de um assassino em massa, de um preso político ou de um ladrão de galinhas. Humilhações violentas desse género não podem ser deixadas passar em branco porque, no momento em que uma cidadã é humilhada daquela forma e opta por não revelar o nome com medo de represálias, é hora de a sociedade reavaliar os códigos morais que a regem. Pois nesse momento são todos vítimas e carrascos nessa poranduba. 

E para que conste, digo isso na condição de filho, sabendo que a minha mãe, com a compaixão que lhe é virtude, viria em minha defesa se soubesse que sofrera alguma injustiça. E quero acreditar que sua mamãe também faria o mesmo por si, e protegê-las é mais do que uma questão de honra. É amor mesmo, desse que não tolera que a bota de um servidor público no pescoço daquela mulher de Parelheiros de 51 anos de idade, viúva, com cinco filhos, dois netos e negra, simbolize o pé nas artérias carótidas do Brasil.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.