Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Um livro para sempre

Fotolivro de David-Alexandre Guéniot retrata o luto por sua companheira em um precioso relato da vida de um homem enquanto não se deixa morrer

11nov2022 | Edição #64

O livro da Patrícia conta a história de uma perseguição. É o livro do luto de David-Alexandre Guéniot pela sua companheira, a fotógrafa portuguesa Patrícia Almeida (1970-2017). Mas é, antes, a história da perseguição de David pela imagem que restará de Patrícia, após a sua morte. Patrícia deixara inacabado o projecto de uma História pessoal da fotografia — e David propõe-se terminá-lo.

Mas o que é terminar os projectos daqueles que amámos, se não terminar com eles ou nos terminarmos? Coisas que vi neste livro: fragmentos daquela história e do amor entre Patrícia e David, ordenados de acordo com a busca de um mistério. Como seria que ela o via? Como veria o mundo? David parece querer adivinhar o invisível, buscando ver pelos olhos de Patrícia. Nenhuma proximidade ou amor nos dará o mundo como ele foi visto por aqueles que amamos, porque também os amamos em não podermos nunca aceder a essa visão. Amamos no desconhecimento e no desconhecido.

Se a fotografia fosse uma arte das coisas visíveis, então talvez fosse o pior meio possível para dar conta da cegueira do amor. Mas talvez a fotografia não seja a arte da visão, mas da cegueira, não da claridade, mas de tudo aquilo que permanece enigma diante do pouco que conseguimos ver.

É inglório, pensarão os sobreviventes, perseguir o invisível, que é aquilo que Patrícia terá visto. E, no entanto, é urgente para quem sobrevive buscar precisamente o que não pode nunca alcançar: não aquilo que ela viu e o modo como o viu, mas buscar essa busca.

Nenhuma proximidade ou amor nos dará o mundo como ele foi visto por aqueles que amamos

O livro da Patrícia não presentifica Patrícia Almeida. Não saímos dele com a impressão de ela estar, de novo, diante de nós. Não a ressuscita nem o quer fazer. Aproxima-se do seu rasto, respeitando o facto de que uma mulher terminou, porque o único modo de preservar quem ela foi é respeitar que não se é ninguém para continuar ninguém: o narrador deixa-a morrer e dá conta da sua vida depois disso. Dá conta do modo como se vai safando, com um respeito arrepiante para com o facto de que a fotografia não devolve os mortos à vida.

Que lugar tem o amante na morte da companheira? Que lugar teve na sua vida, quem são os outros, que lhe dão “sentimentos” pela sua partida? Que sentimentos são esses? E, mais do que isso, como pode a morte da mulher não ser inteiramente privada, questão dos amantes um com o outro; como pode a morte, como, aliás, o nascimento, tornar o nosso corpo e nossa memória coisa pública? Guéniot escreve a partir dessa vertigem, a de querer Patrícia para ele e os mais próximos e a morte tornar Patrícia um ser de todos. Os mortos não têm dono — são de toda a gente. Os sobreviventes apercebem-se disto de imediato, com revolta.

Em O livro da Patrícia, David-Alexandre Guéniot reconstitui a memória de Patrícia Almeida de um modo que a reconduz ao círculo íntimo, de onde os mortos fogem assim que morrem. Estão no livro as obrigações e os ritos funerários: os pêsames e as cinzas, as conversas mais difíceis de sempre e os pedidos de ajuda, os amigos, o curso contínuo dos dias que se sucedem quando os queria parados, porque o seu amor morreu. Mas o que é absolutamente singular neste livro, e é a razão do seu título (chamar-lhe O livro da Patrícia é tomar a decisão generosa de partilhar com o leitor o seu título de trabalho), é não se tratar de uma elegia, mas do precioso relato da vida de um homem enquanto não se deixa morrer.

Fazem-se livros por muitas razões. Raros livros são como O livro da Patrícia: livros que são a condição da sobrevivência dos seus autores, que entendemos, enquanto os lemos, e não porque neles nos é dito, que quem os fez morreria se não os tivesse feito. Chamar-lhe livro do ano 2022 seria inadequado. O livro da Patrícia é um livro para sempre.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.