Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

O grito

Gritava em liberdade, aquém de qualquer forma do nervosismo, antes de qualquer trauma, antes da dor

02jun2022 | Edição #59

Os meninos e as meninas jogavam à bola na rua sem adultos por perto. Os rapazes mais velhos andavam de bicicleta e ela, a menina, estava a ver se alguém lhe prestava atenção. Caminhava para a frente e para trás, do começo ao fim da travessa, a agarrar uma boneca pelos cabelos, um pouco entediada. O grito assustou-me. Não era grito de alguém que se tivesse magoado, parecia mais um ensaio de voz. Era a menina que gritava, enquanto andava até ao fundo da rua. E, depois, continuando, gritou mais e mais alto, não um grito, um guincho contínuo, estridente, interrompido para inspirar e ganhar fôlego e, logo, retomado, numa nota única, longa quanto a respiração.

Conheço por dentro esse tempo fugidio em que a sofreguidão de aproveitarmos as horas escassas juntos perde logo para o que nos afasta

A menina gritou e, achando piada ao grito, gritou mais e ainda mais. Os miúdos não ligaram, conversavam uns com os outros, não havia mais ninguém na rua. Era como um bebé quando descobre os próprios pés e começa a pô-los na boca, a admirá-los. A menina guinchou e entendeu que guinchava, que o guincho vinha dela e tinha graça. Guinchou mais, mais alto.

Ouvi da varanda. Vieram-me à cabeça sonhos em que quero gritar, ver-me livre de alguma coisa, e me falta a voz. Os sonhos em que o grito é de socorro e não sai, sonhos da família daqueles em que a língua incha, ou as pernas não andam, ou se fica mudo por completo, ou falta a força nos braços, ou os dentes se partem, ou o caminho é mais e mais íngreme.

Manifestações

Gritava em liberdade, aquém de qualquer forma do nervosismo, antes de qualquer trauma, antes da dor. Transportou-me ao fotolivro de Pedro Guimarães, Rato, tesoura, pistola, publicado pela XYZ Books em 2021. O fotógrafo apresenta-o: “É assim que passamos o tempo juntos. É desta forma que damos vida aos nossos fantasmas e demónios. Tirando fotografias, desenhando criaturas engraçadas e cozinhando panquecas que parecem monstros assustadores antes de as comermos com açúcar ou Nutella. É assim que brincamos juntos, como fingimos não existir tal coisa como o vasto vazio que nos separa durante a maioria dos dias da nossa vida: 2.500 quilómetros de terra e água, para ser preciso, a imensidão da Europa.” Poucas vezes as coisas nos são descritas de modo tão terra a terra. “É assim que passamos tempo juntos.”

O que vemos em Rato, tesoura, pistola é esse “assim”. As máscaras de panquecas, evocativas das máscaras de Ralph Eugene Meatyard, os buracos que os dentes de leite deixam quando caem, as feridas nos joelhos, os desenhos dos filhos, uma menina de cinco anos, Sofie Engstrøm Guimarães, e um menino de sete, Nuno Engstrøm Guimarães, apresentados a cores a par das fotografias a preto e branco do pai. Conheço por dentro esse tempo fugidio em que a sofreguidão de aproveitarmos as horas escassas juntos perde logo para o que nos afasta. Temos o mesmo sangue, mas estranhamo-nos. Amamo-nos, mas não nos conhecemos assim tão bem, não sabemos bem como amar-nos ou mostrar que nos amamos.

Talvez um fantasma ande pelo mundo à procura das cicatrizes, razão por que os motivos se repetem

Numa das fotografias de Rato, tesoura, pistola há um boneco de plástico gigante, Bob Esponja (talvez numa feira ou num parque de diversões), dentro de cuja boca aberta brincam crianças. A boca aberta opõe-se aos fantasmas feitos de lençóis, cujos olhos são buracos, à boca cerrada ou inexistente das máscaras da artista Sara Bichão, que as cedeu para o projecto, ao buraco nos dentes da frente do filho de Pedro Guimarães, que, num grande plano, assume a dimensão de um portal. Mas para onde?

Vazios

São olhos e bocas que não veem e não falam, ou, pelo menos, indiciam um mutismo, uma via obscura, biombos, mordaças. Os meninos mascaram-se de fantasmas. O pai, escondido com um lençol atrás do tripé com que os fotografa, envolto em fumo, não é fotógrafo, mas um espectro, talvez porque os encontros que se revelam neste livro participam da mesma condição espectral. Não sei como é o mundo ou o corpo humano visto pelos olhos de um fantasma ou com que se parece uma fotografia tirada por um, mas talvez se pareça com Rato, tesoura, pistola. Talvez um fantasma ande pelo mundo à procura das cicatrizes, razão por que, neste livro, os motivos se repetem, numa conversa entre os desenhos dos miúdos, as imagens do pai e as fisionomias surpreendidas nas rochas da praia onde passeiam, nas quais também se avistam monstros.

Era o guincho de alguém a quem ainda nada calou, alguém que ainda não caiu

Os dias solares dessas fotografias não têm a rotina dos Verões que já não se distinguem uns dos outros. Não é um pai e os seus filhos, mas o acontecimento de estarem juntos quando o estão raramente, o acontecimento que é, para nós, poder espreitar esse momento raro. Verões assim lançam-nos na dúvida. Vivemo-los, passámos por eles em pequenos, um dia esquecê-los-emos. Mas poderemos passar incólumes por eles? Temos como não sair deles com os joelhos feridos — ou incapazes de gritar?

O grito da menina andando rua fora era o de alguém a quem ainda nada calou, alguém que ainda não caiu. Andando e gritando, ela caminhava sem pressa. Estava só. Acompanhada apenas do grito. Fui à janela e, então, testemunhei. Tinha o olhar perdido, mexia no cabelo, enrolava-o nos dedos. Guinchava continuamente, alheada de tudo. A menina precisava de companhia e arranjou no grito uma amiga. Já não parecia querer saber do facto de que ninguém lhe ligava. Menina que ainda é capaz de gritar (ainda) não está sozinha.

Nota
Tema livre é a coluna quinzenal de Djaimilia Pereira de Almeida, acompanhada de imagens de Humberto Brito

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.