Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Casa assombrada

‘Conheço pessoas completamente indiferentes à morte, mesmo dos próximos, e outras que não sobreviveram à perda daqueles que mais amaram’

04ago2022 | Edição #61

A minha casa está assombrada. Por isso a amo tanto. Todos os dias, pelas 19h, ouço o que me parece o choque entre dois copos de cristal. O som vem do tecto, perto do candeeiro, se estou na sala. Do centro do corredor, se estou no quarto, da varanda, se estou na cozinha. É a canalização. Não.

Conheço pessoas completamente indiferentes à morte, mesmo dos próximos, e outras que não sobreviveram à perda daqueles que mais amaram. Há pessoas para todos os gostos, algumas são paredes suportadas por vigas. Outras, candeeiros de rua, equilibradas no seu eixo.

As estações têm cheiros, não é só o cheiro das coisas naturais, do vento, das flores, do mar, das nuvens. É também o cheiro que emana dos nossos pressentimentos, dos anseios, das tristezas secretas, dos lugares onde nos escondemos.

O que é um lugar dentro de um sonho — dentro de um livro? A Ítaca de Homero, a Dublin de Joyce? Mais parecidas com o brinde dos inquilinos invisíveis da minha casa do que com cidade alguma aonde me leve um avião.

Lisboa, por exemplo, que é, vista deste lado do rio? Um jogo de casinhas a escalar a colina que vai dar a um castelinho, ruas de cujo nome me esqueci, caras como há nos sonhos — mexem os lábios —, mas acordei. Se calhar, a literatura está na vida como o cheiro das estações que são só nossas, as que não contamos a ninguém. Pode ser Primavera e cheirar a consoada. Junho, mas tresandar a castanhas assadas, Agosto, mas amanhã é Domingo de Páscoa.

Voo

Nos sonhos, voo, mas não tenho asas. Não preciso sequer de esticar o braço como a Mulher Maravilha. Faço impulso com o corpo, levito e descolo. Passo as noites a ver o mundo como imagino que as águias o veem, mas mesmo então voar serve ao propósito de fugir a variados perigos: contas que não tenho dinheiro para pagar, homens de cara feia, condutores maldispostos. Voo, mas é como entender que os pássaros não são livres, mas estão só em guerra por comida.

Talvez um homem descolasse por outras razões, perante outros perigos. Talvez um homem levantasse voo para evitar outras coisas. Lá em cima, não sou mulher ou homem. Quando voo não há corpo nem sou bem pessoa. Não são as ideias a raiz do movimento, mas uma energia desprendida de qualquer nome ou identidade. Quando voo, sou ninguém, ainda que continue a ter nariz, orelhas, mãos, pernas, braços, sexo e uma cara. Pensamento sem mulher que o prenda, electricidade com um passado perdido.

As estações têm cheiros, não é só o cheiro das coisas naturais. É também o cheiro que emana dos nossos pressentimentos

São dois fantasmas meus amigos que bebem o dia inteiro e fazem brindes por tudo e por nada. Vivem aqui e não me assustam. Se calhar, gozam connosco, se calhar estão fartos de ouvir a música que ouço horas seguidas, se calhar dançam pela sala, quando vamos dormir.

Só viveu uma senhora na minha casa antes de a habitarmos. Foi inquilina durante 55 anos. Saiu de casa para ir para o lar onde morreu pouco depois. E viemos nós. Há qualquer coisa dela atrás da estima deixada em tudo (a senhoria diz que a senhora tinha a mania das limpezas). Quando entrámos, a casa parecia nova, porque a senhora a tratara com todo o cuidado cinco décadas. Deve andar ainda aqui a limpar os cristais. Que sei eu sobre este lugar, que não há aqui cristaleira nenhuma? As vizinhas suas contemporâneas vigiaram os meus primeiros passos para ver se eu estava à altura da senhora antiga: será que limpa os estores? Será que dá os bons-dias? Será que é boa moça? Para onde terá ido a senhora, que aqui pôs tudo o que tinha, se não andar aqui mesmo, a jogar ao gato e ao rato connosco, para ver se nos portamos bem?

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.