Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Por linhas tortas

Nas fotos dos antepassados percebo as raízes de quem somos: não estamos nelas, mas eles estão em nós; se não temos seus traços, carregamos algo de sua alma

01dez2021 | Edição #52

Uma tia enviou-me uma fotografia da minha avó em jovem. É uma rapariga de cabelo farto, escuro. O canto interior dos olhos quase desmaia. O nariz é, ao mesmo tempo, aquilino e arrebitado. O lábio superior desenhado a lápis ameaça sorrir, sem que a mulher sorria. As orelhas são carnudas. Fixa um ponto abaixo do horizonte e tem o queixo curvo a três quartos, como em imagens da época. O colo é cheio. Veste uma saia e um casaco branco, pouco ou nada decotado.

Olho-a, enfeitiçada, e encontro os lábios do meu pai e de uma das minhas tias. O esgar de uma das primas. A testa dum tio. O olhar doutro. O cabelo de algumas primas etc. Na sua fisionomia concentra-se a fisionomia de todos os filhos e netos num só rosto de mulher, como se a jovem tivesse doado uma parte da sua cara a cada um e, ao fazê-lo, doando-se traço a traço a cada um dos filhos e aos filhos deles, tivesse perdido aos poucos o rosto, que terminou muito longe da face lisa da fotografia. É aí que percebo na imagem a raiz das nossas caras e de quem somos.

Não consigo encontrar a minha cara na fotografia. Sinto-me diante do postal de uma diva de cinema muito parecida com pessoas que conheço. Vejo nela a cara do meu pai, mas só em linhas que não herdei. É uma jovem branca e eu não, mas, no esfumar das parecenças, talvez a minha cara esteja na sua, ainda que por linhas tortas. Nunca deixa de me surpreender diante de pais e filhos que, misteriosa certeza mais velha do mundo, os filhos, pessoas independentes, tiveram origem nas pessoas independentes que são os pais. Também perante os meus pais, acordada para as nossas diferenças, imaginar que deles vim nunca deixa de me causar estranhamento. Somos estas máquinas que parecem ter caído do céu, mas não estariam aqui não fossem outras máquinas parecidas conosco.

Por mais que não me consiga encontrar na cara da rapariga, estou no gesto dela a ajeitar o cabelo

Na fotografia, o cabelo da avó está preso com duas travessas, tal como ela o arranjava em velhinha. Ainda guardo uma dessas últimas travessas, objecto de plástico sem valor. Por mais que não me consiga encontrar na cara da rapariga, estou no gesto dela a ajeitar o cabelo, a cada vez que penteio este meu cabelo tão diferente do seu. E o pressentimento da mão da jovem a ajeitar o penteado para a fotografia inclui-me a mim, descendência, na fotografia. Talvez a coisa mais parecida comigo seja o que a fotografia não mostra. As mãos e o gesto, a pose senhoril, um tanto tímida, ou evasiva. A fotografia não radiografou a alma da jovem e, contudo, olhando a sua cabeça, vejo que o rosto é apenas o princípio da semelhança. E por dentro? Que degrau coube a cada um de nós da escadaria do teatro da rapariga? Não estamos na fotografia. A rapariga está em nós. “Tu estás em mim como eu estive no berço/ como a árvore sob a sua crosta/ como o navio no fundo do mar”, como escreveu Mário Cesariny.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.