Detalhe de "Afternoon on the Promenade des Anglais", de Edvard Munch (Reprodução)

Onde Queremos Viver,

Espiral vertiginosa

Como navegar o presente e conseguir ainda ouvir a música interior?

29maio2025 | Edição #94

Às vezes, para escrever, fecho os olhos e tento ouvir. A frase vai-se formando na minha cabeça, vai falando, e vou escrevendo o que a frase diz. Não é contacto com fantasmas. Mas parece. Não é igual a ouvir vozes, mas é parecido. Às vezes, vejo uma imagem da minha vida na mente.

Às vezes, é como agora há pouco, quando voltei a ver diante dos meus olhos o fantasma da fotografia que tirei à mão da minha mãe, há mais de quinze anos, e que perdi. Era a imagem da sua mão direita, com um anel de noivado. E então sigo essa primeira imagem e as frases desenrolam-se num correr soluçante e melancólico. Um pretendente pedira a minha mãe em casamento. Ela recusou, mas ficou com o anel.

Lembro-me primeiro da mão e de como o anel era um anel barato e lembro-me de outro dia, num passado remoto, em que a minha mãe foi comigo a uma ourivesaria comprar o anel de noivado que homem nenhum lhe dera, oferecendo assim uma prenda a si mesma, por achar que o merecia.

*

As frases continuam, mas as imagens estancam. Já estou longe da primeira. Fico-me nessa ideia, da mulher jovem que compra o seu próprio anel de noivado, com o seu dinheiro. A noiva empreendedora, antes ainda de o ser. A divorciada desenvolta. A mulher livre, dona da sua vida.

Depois, vem a parte da qual tenho vergonha, nos dias em que me custa escrever, que é o facto de que assim que começo a conseguir me apetece chorar: não porque me comove o que vou escrevendo, mas antes porque é como se um canal interrompido se abrisse, uma ligação que estava perdida entre mim e quem sou, entre mim e as imagens, entre a mão e a cabeça.

Lembro-me do dia em que a minha mãe foi comigo comprar o anel de noivado que homem nenhum lhe dera

E então, continuo, escrevendo o que vou ouvindo; na televisão, fala–se sem som:

custa olhar para o mar constantemente, se o fixo muito sinto uma vertigem, tenho medo que alguém abra uma tampa e a água escorra depressa para o fundo, numa espiral vertiginosa.

A frase já não pega com o começo. Então, paro. Vivo entre acompanhar o que se passa à minha volta e o impulso para cortar o contacto com as imagens do mundo.

Nina Simone escreveu que o artista responde ao tempo em que vive. Mas não será uma forma plausível e resistente de o fazer a de ignorar o tempo em que vive, encontrar uma resposta que não seja uma reacção, mas que se constitua como uma resistência a esse tempo?

Recusarmo-nos a subjugar o nosso tempo e atenção à máquina que governa tudo (existirá mesmo essa máquina?) será resistência, submissão ou estupidez? 

Como navegar o presente e conseguir ainda ouvir a música interior? Como conseguir chegar ao âmago de uma frase, sem nos tornarmos nem lacaios do chamamento ininterrupto da superfície da vida nem cegos por escolha?

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora portuguesa, publicou Esse cabelo, A visão das plantas e O que é ser uma escritora negra hoje (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025. Com o título “Espiral vertiginosa”

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