Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Um ponto de paragem

Talvez os lugares que conhecemos sejam tão temporários como acampamentos nómadas e a nossa vida, mais parecida do que pensamos com a vida no deserto

01jan2022 | Edição #53

Tenho ouvido Exiles, o novo disco do compositor Max Richter. Composta em 2015, quando da morte de pelo menos oitocentos migrantes a caminho de Itália, vindos da Líbia, a peça evoca uma cabeça cheia de começos, talvez a de um menino num bote, apavorado, cabeça cheia de Europas e gelo. Pressentem-se as vagas no compasso, mas ele é limpo, ecoa de um lugar seco. Exiles está tão longe do menino do bote como o menino do bote está longe de Itália. 

O que é entrar dentro da música de alguém, como se entra na casa de alguém? Richter parece ter ido à procura da cabeça do menino e ter encontrado a própria cabeça. Será fatalidade, ou sinal de que se tentou? Abrir uma porta, dar à chave, acender o lume, ligar a luz — ou, fechar uma porta, perder a chave, apagar a candeia, caminhar às escuras? 

Fins e começos 

A vida admite mais fins do que começos. Conheço uma mulher que, vida fora, nunca fez senão morrer e outra que, em vista do namoro da morte, tenta nascer a tempo.

Em Eu vou, tu vais, ele vai (Relógio D’Água, 2018), Jenny Erpenbeck conta a história de Richard, um professor aposentado berlinense que conhece um rapaz nómada acampado na Oranienplatz em Berlim. “O professor emérito, que num dia ouve tantas coisas pela primeira vez como se fosse de novo criança, compreende de súbito que a Oranienplatz não é apenas a praça concebida no século 19 pelo famoso arquiteto paisagista Lenné, não é apenas a praça onde uma velhota passeia todos os dias o cão, ou onde uma rapariga num banco de jardim beija pela primeira vez o namorado. Para um jovem que cresceu entre nómadas, a Oranienplatz, onde viveu durante um ano e meio, é apenas um ponto de paragem num longo caminho, um lugar temporário que conduz ao próximo lugar temporário. Quando desmontaram as tendas, o que para o senador do Interior de Berlim era exclusivamente uma questão política, aquele jovem pensou na sua vida no deserto.” 

O modo como o rapaz nómada vê a Oranienplatz não transfigura só o modo como a via o professor, que por ela costumava passar, mas põe em questão aquilo que a Oranienplatz é. Talvez os lugares que conhecemos de sempre sejam tão temporários como acampamentos nómadas e a nossa vida, mais parecida do que pensamos com a vida no deserto.

No romance, o rapaz e o professor tornam-se amigos. Tudo aquilo que todos os professores sabem não chega para o que aprendem com o rapaz nómada. Tudo aquilo que todos os rapazes nómadas sabem não chega para o que aprendem com o professor. Uma definição de vida: “Um ponto de paragem num longo caminho, um lugar temporário que conduz ao próximo lugar temporário”. A mulher que morreu muito não consegue dormir com medo da vida. A mulher que tenta nascer não consegue dormir com medo da morte. Gostava de ouvir tantas coisas pela primeira vez, como se fosse de novo criança.

“Prestes a embarcar para uma viagem ao Chipre e à Grécia, o papa Francisco afirmou que o Mar Mediterrâneo, berço de grandes civilizações, se tornou um ‘cemitério’”, noticia uma agência de notícias. Mas como acordar a meio da noite, em terra firme, e estender a mão, sem tropeçar nos degraus da nossa anestesia, no lirismo inconsequente da nossa empatia? Como alcançar a mão do menino no bote e não soar longe?

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.