Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

A dificuldade de ver

Fotolivro de Teju Cole é um antipostal da Suíça, cartão-postal perfeito aonde os olhos já chegam cansados antes mesmo de lá ter aterrado

26ago2021 | Edição #49

Fernweh é o antónimo de Heimweh (saudade de casa). Significa a vontade de estar longe.” É desta forma que Teju Cole explica o título do fotolivro Fernweh, antologia de várias viagens à Suíça entre 2014 e 2018: “Fui à Suíça, e continuei a ir. Lembro-me de muitas tardes de deriva e solidão, nas cidades, nas aldeias, nos ferries, nos trilhos, na paisagem e nas montanhas. Uma herança colectiva parecia estar preservada ali, um longo poema numa língua ameaçada, um microcosmo de vulnerabilidade planetária, e comecei a ter saudade de regressar a esse terreno”.

Quase não há pessoas em Fernweh, salvo o homem atrás da câmara. “Observados de perto, todos os mundos parecem eles mesmos estar a pensar, a lembrar-se de si mesmos.” Transpondo este pensamento das cordilheiras, lagos, esquinas, rochedos, barcos, curvas, caminhos e mapas de Fernweh para os lugares que nos são próximos, questiono-me se estarão próximos demais para os vermos tão bem quanto conseguimos ver um lugar estranho. O viajante não parece precisar dos mesmos óculos de que precisamos para ver o lugar onde vivemos. Ou a viagem é remédio para a miopia ou a miopia é condição da familiaridade (e não haja óculos de leitura que valham).


 

Fernweh conta do olhar de um estranho em visita. A câmara aponta para o chão, a dobra inesperada, instantes anódinos e não decisivos, que passariam despercebidos, porventura, aos habitantes locais. É um livro feito por uma pessoa incompreensível, que outras, vendo-a parar a meio do caminho, e disparar a câmara, não percebem o que a atraiu nas vistas. Colecção de antipostais, Fernweh é um antipostal da Suíça exactamente porque “poucos lugares parecem tão próximos do seu postal perfeito como a Suíça”, dificuldade acrescida para o fotógrafo, cujos olhos chegam cansados à Suíça antes mesmo de lá ter aterrado.

Muitos outros pesam sobre as pálpebras, reconhece Cole. Viajantes oitocentistas, outros fotógrafos, milhões de turistas anónimos, dos frescos plastificados da publicidade ao chocolate até à viagem de James Baldwin pela mesma paisagem em “O estranho no vilarejo”, anotações célebres à margem de uma estada em Leukerbad, em 1951. Baldwin discutira nesse ensaio a noção de, em terra estranha, se sentir o primeiro negro avistado no mundo. Mas como pode um homem negro chegar hoje à Suíça sem chegar à Suíça depois de Baldwin?

A dificuldade de ver está na raiz de Fernweh e, quem sabe por isso, são tão escassas as figuras humanas no livro. Se “a intimação de um certo desaparecimento” o perpassa, esta é menos a do desaparecimento das pessoas ou da pessoa do autor e mais a intimação do desaparecimento do seu rasto, como se, a braços com um “lugar mágico”, pelo qual se ansiou à distância, o fotógrafo se visse compelido a arriscar fotografar sem ser encontrado.

Antiviagem

E, então, o antipostal é, ele mesmo, a antiviagem, como se também a visita do estranho não tivesse acontecido e as fotografias do lugar distante pudessem ter sido tiradas sem lá ter estado, sem o ter pisado, ao contrário dos postais, que nos dão notícia de outros mundos porque alguém lá esteve.

Aproximo Fernweh de postais de uma viagem à Suíça, coleccionados por viajantes portugueses em meados do século passado. Estão anotados por um casal e guardados num álbum forrado com um tecido florido, com a inscrição “A nossa viagem aos Alpes — 1947”, encontrado numa feira de antiguidades perto de Lisboa. As fotos foram coladas ao lado de postais dos mesmos sítios. Estiveram lá e tentaram fotografar a paisagem tal qual os postais, criando os seus próprios, anotados e guardados no álbum. Por que quererá alguém transformar a sua passagem por um lugar num postal desse lugar? Reencontramos esse impulso nos bilhões de imagens do Louvre, em qualquer hashtag das Sete Maravilhas do Mundo. Parece quase que a convencionalidade da prova material de que se esteve longe acompanha a ânsia de estar longe. Não será o próprio anseio de distância um postal?

Se Cole tenta em Fernweh o antipostal, Fernweh está impregnado dessa tentativa. Nenhum antipostal (e nenhuma antiviagem) se compreende sem ter em conta todos os postais (e todas as viagens). Como um mundo se pensa e se lembra de si mesmo, assim o visitante se pensa e se lembra de si. Apenas por pouco, em Fernweh, a deriva não cede à lassidão, apesar dos quartos de hotel, fotografados de dia, da cama evocando a sesta do viajante; nos andaimes, tapumes e montras ao entardecer, evocando o giro depois da sesta de um turista atento e sem relógio. Talvez a Suíça exerça esse feitiço nos passeantes, em Cole como nos anónimos do álbum antigo, ausentes nas fotografias das suas férias e, nessa medida, tanto mais à vista. Ou, quem sabe, mesmo um estranho em visita possa arriscar perder-se.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.