Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Mulher para tudo

Lynette Yiadom-Boakye pinta pessoas que não existem, mas que se parecem muito com homens e mulheres de hoje e de outrora, de várias cores e feitios

01nov2021 | Edição #51

Lynette Yiadom-Boakye (1977) pinta pessoas que não existem, fora do espaço e do tempo. Costuma afirmar que, situando-as nesse contexto indefinido, tenta que não sejam tomadas como símbolos. 1 pm, Mason’s Yard, um entre inúmeros quadros, esteve em exposição em 2019 no Yale Center for British Art. A mostra foi a segunda de uma série de três dedicadas a mulheres artistas residentes no Reino Unido, com curadoria do americano Hilton Als (professor, crítico de teatro e autor de White Girls), “The Hilton Als Series: Lynette Yiadom-Boakye”.

Basta trancar as pessoas que se pintam num minuto exacto; uma vez no quadro, não são ninguém e são todas

Em 1 pm, Mason’s Yard, a mulher que não existe está sentada numa cadeira, descalça, tem uma das mãos entre os lábios e o queixo. O título do quadro marca as horas, é uma da tarde. Talvez aguarde que a venham buscar. Está bem-arranjada de mais, a condizer com o cadeirão e com a planta no vaso a seu lado; só lhe faltam os sapatos. Mas, talvez porque o cadeirão está no meio do nada, contra um fundo pardacento, e a mulher absorta, ficaram de a vir buscar há meia hora e ainda não chegaram. É curioso que ajude saber que ela não existe para tudo se tornar problema: o porquê do padrão do vestido, o que diz o olhar (entre o alheamento e o orgulho, ou entre a fome e o sono, ou entre a impaciência e o desapego), porque pinta as unhas de vermelho, se tem ou não uma obsessão com a cor verde. Mas, que sabemos? Estará em sua casa ou em casa de um amante, ou de uma amiga e, em vez de aguardar que a venham apanhar, aguarda que alguém termine o duche. A mulher que não existe é tudo e nada. Tem o cabelo curto de Lynette, mas não usa óculos. Se calhar, chegou agora da rua, descalçou-se e está a fazer tempo para ir cozinhar. Ou, então, é feriado, e decidiu experimentar um vestido novo só porque lhe apeteceu. Ou o vestido é antigo e tem o fecho desapertado nas costas, porque engordou três quilos. Ou apenas descansa, apenas pensa, e arranjou-se para descansar e para pensar, porque não? Li sobre esse quadro que, contra o artifício da personagem, os pormenores naturais, nos tecidos e na planta, a deixavam humana contra a natureza, sublinhando o que existe de desigual nesse confronto.
 


Lynette Yiadom-Boakye na Tate Modern, em Londres

A imaginação voa

Não sei. Sei que é uma da tarde e que uma mulher não precisa de existir para estar quase a ficar chateada. Ou triste, ou enfadada, ou para procrastinar. Não precisa de existir para se sentar e pensar na vida. Às vezes, o que parece repouso é pensamento e o que parece um vestido de festa é, na verdade, um pijama. Sei que, se a mulher existisse, se calhar não estava tão à beira de tanta coisa, porque sabíamos quem era e ela passava a ser mulher para menos coisas. Assim, como não existe, vestida e arranjada, é mulher para isso e para muito mais, para tudo e mais alguma coisa.

Noutro plano, por ser ninguém, essa mulher sentada pode ser uma data de gente que realmente existe. Quando primeiro a vi, julguei ser um autorretrato de Lynette e, depois, senti que me via ao espelho. Mas agora, vendo melhor, acho-a parecida com muitas outras pessoas, mulheres que existem e que não existem, homens existentes e imaginários, gente de hoje e gente de outrora, de várias cores e feitios, prima de tantos, de Godot a Nina Simone. Afinal, sempre há vantagem em só dar aos quadros a hora, porque a imaginação voa. Lynette Yiadom-Boakye entendeu que já basta trancar as pessoas que se pintam num minuto exacto, não vale a pena fazer-lhes a maldade de as forçar a ser o que não são, até porque, uma vez no quadro onde as trancamos, não são ninguém nunca mais e são todas, todos e mais algum. Uma mulher, um vestido, um cadeirão, uma planta — um universo e uma mão cheia de nada. Se alguma coisa de extraordinário distingue Yiadom-Boakye é ser alguém que abre em vez de fechar, que revela em vez de encobrir, fazendo pouco mais do que pintar gente de que já não nos lembrávamos, que não vemos há muito, com que ainda ontem nos cruzámos, com quem vamos almoçar amanhã, toda a sorte de desconhecidos.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.