Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

O impacto invisível da violência

Precisamos encarar o sofrimento mental pela exposição contínua a episódios violentos e as microagressões cotidianas, principalmente na população negra

01set2024 • Atualizado em: 04set2024 | Edição #85

Entre um café amargo e as manchetes sempre urgentes sobre a polarização política, a guerra entre Rússia e Ucrânia, debates político-eleitorais, acabamos nos esquecendo de um olhar mais atento não só às violências, mas ao impacto delas em nossas vidas. O golpe que sentimos ao assimilar os números das manchetes ou ler alguma notícia sobre mais um episódio violento na cidade. Eles estão tão inseridos na nossa realidade que naturalizamos números e notícias sobre violência, intensificando a sensação de insegurança e não percebendo que essa dinâmica violenta não apenas interfere em nossas rotinas, mas também em nossa saúde mental.

Estudo para Battledore (1868-70), do inglês Albert Joseph Moore (The MET/Reprodução)

Estatísticas sobre violência, saúde mental, raça e classe social aparecem, em geral, fragmentadas, como peças de um quebra-cabeça que poucos se atrevem a montar. Parece que há uma resistência em conectar esses pontos, em enxergar o que se esconde na intersecção dessas temáticas e vivências, como se lidar com violência, racismo e classismo fosse coisa só da esfera econômica ou sócio-cultural — sem considerar o impacto dessas dimensões em nossa psique.

No Brasil, vivemos a violência como uma ameaça constante, que nos impõe uma postura alerta. Poderíamos dizer que se trata de uma pandemia. Nos últimos anos, vimos esse esforço de análise se ampliar, principalmente a partir de formulações de pensadores e pesquisadores negros, como Tadeu de Paula, Rachel Gouveia e Emiliano David, relacionando violência, racismo, capitalismo e transtornos mentais e apontando formulações que articulam conhecimentos populares e comunitários, bem como a sabedoria dos terreiros e do povo de axé para enfrentarmos essas problemáticas pelas encruzilhadas. Seria a violência a causadora de transtornos ou são os transtornos preexistentes que tornam as pessoas mais suscetíveis à violência? A resposta parece escapar, deixando no ar uma sensação de urgência não resolvida.

Os dados do país são alarmantes. Somos o segundo país das Américas em diagnósticos de problemas de saúde mental, atrás apenas dos Estados Unidos. E quando o assunto é ansiedade, lideramos o ranking mundial, com quase 9% da população afetada. Para as jovens mulheres, o cenário é ainda mais sombrio: o suicídio é a segunda maior causa de morte, superado apenas pela violência interpessoal, que vai das agressões físicas ao feminicídio.

O adoecimento mental é, também, um projeto político — corpos e mentes doentes pouco ou nada se mobilizam

Para a população negra, há uma violência adicional: as microagressões cotidianas. Essas têm um peso psicológico imenso e causam desgaste físico e mental ao demandar empenho contínuo para lidar com essas situações. Na psicologia, esse processo é discutido como Dano por Estresse Traumático de Base Racial. A raiva, muitas vezes contida, explode de maneiras que a sociedade prefere não enxergar. bell hooks, em seus escritos, nos lembra que essa raiva é um reflexo das injustiças acumuladas, uma reação que precisa ser compreendida, não reprimida.

A Organização Mundial de Saúde tem apresentado, sistematicamente, a violência como uma questão de saúde pública, com impactos diretos e indiretos na manifestação de doenças no mundo todo. A violência, ainda segundo a oms, agrava ou engatilha sofrimentos emocionais e sintomas psiquiátricos como depressão e ansiedade, além de uso abusivo de substâncias como álcool e outras drogas. Sofrida em criança, a violência pode ter efeitos ao longo da vida toda, duplicando a chance da vítima sofrer distúrbios mentais, internações e problemas de autoconceito, entre outros.

Segundo plano 

As políticas públicas ainda deixam muito a desejar. Embora a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra tenha sido aprovada, na prática o sofrimento mental dos negros continua sendo negligenciado. As prioridades impostas pela sobrevivência — garantir o pão de cada dia, lidar com a instabilidade no emprego — acabam relegando a saúde mental a um segundo plano. E, quando o acesso ao tratamento é precário, devido ao desmonte da rede de atenção psicossocial, e a intensificação das desigualdades avança, muitos acabam recorrendo à fé como única forma de alívio.

As operações policiais, os tiroteios frequentes, a insegurança que invade todos os espaços — tudo isso cria um ambiente de tensão psíquica insuportável. No início dos anos 2000, uma pesquisa realizada pelo Ibope, encomendada pela Associação Brasileira de Familiares, Amigos e portadores de Transtornos Afetivos, apontou que pessoas das classes c e d eram mais suscetíveis (25%) à depressão do que pessoas das classes a e b (15%). Já a pesquisa São Paulo Megacity Mental Health, de 2012, indicou, também, uma maior incidência de transtornos de ansiedade em pessoas com menor escolaridade, e que a violência se apresentava como um gatilho para o uso abusivo de álcool e outras drogas.

É preciso superar o pensamento de que o cuidado com a saúde mental é coisa “de rico” e que seria algo a ser considerado apenas no plano individual. É impossível não sentir a urgência de políticas públicas que sejam formuladas articulando essas temáticas, pensando-as de forma integrada.

O adoecimento mental é, também, um projeto político, dado que corpos e mentes doentes pouco ou nada se mobilizam. Ao interseccionarmos os temas, fica evidente que não se trata apenas de números e diagnósticos frios, mas de vidas que precisam e demandam dignidade. Ao insistirmos em não fazer essas conexões, continuamos a falhar com as pessoas e com nossa sociedade. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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