Desigualdades,

Encarando o Brasil

Ao relatar sua trajetória, Neca Setubal faz uma reflexão sobre o país e a responsabilidade das elites diante da desigualdade nacional

01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84
A cientista política e educadora Neca Setubal (Nellie Solitrenick/Divulgação)

Em 2024, a concentração de renda no Brasil bateu um recorde, e o 1% mais rico da população passou a deter 23,7% da renda nacional. O dado não é novo, mas se agravou nos últimos anos e coloca o país entre os mais desiguais do mundo. Constitutiva de quem somos como país, a desigualdade carrega também uma pergunta incontornável: qual é a responsabilidade das elites diante desse contexto?

Em Minha escolha pela ação social, Maria Alice Setubal, conhecida como Neca, reflete sobre sua trajetória a partir de uma perspectiva obviamente pessoal, ao mesmo tempo em que faz uma reflexão sobre um país “plural, heterogêneo, desigual e diverso”. Reconhecendo seu lugar de privilégio, encara as desigualdades e se coloca diante delas com intencionalidade e aspirações de transformação. Esse percurso significa, nas suas próprias palavras, “fazer escolhas que exigiram enfrentar contradições e tensões…”.

O título pode soar como uma justificativa ou até uma prestação de contas. Mas pode ser interpretado também como uma janela para um caminho que não é trivial, sobretudo em se tratando de alguém com seu lugar social.

A palavra “escolha” traz alguma ambiguidade. Neca enfatiza mais de uma vez que seu maior privilégio — resultado, entre outras coisas, da educação, do exemplo dos pais, da sua curiosidade e, claro, da sua condição material —, foi a liberdade de fazer escolhas.

Mas o quanto de fato alguém tão privilegiado poderia tratar o enfrentamento da desigualdade como uma escolha? Esse tipo de atitude por parte das elites não seria imperativa considerando a realidade brasileira?

Aparentemente, não. Dados mostram que a cultura da doação e da filantropia no Brasil ainda é tímida. Ela começou a ganhar contornos mais ambiciosos recentemente, resultado de esforços de uma comunidade ainda pequena, incluindo a própria Neca. Mas aprendemos ao longo do livro que não se trata apenas de “fazer”. Como e com quem são elementos que definem o caráter e o impacto desse tipo de empreitada, que no caso de Neca se tornou também a história da sua vida.

Acompanhamos algo raro, uma mulher, filantropa, parte da elite do país, com leitura política da realidade

A filantropia é uma das entradas possíveis para o livro. Em primeiro lugar, porque aborda a natureza contraditória desse campo. O poder da filantropia vem justamente daquilo que pretende mitigar: a concentração de riqueza e poder na mão de poucos, sejam indivíduos ou empresas. Além disso, a autora aborda os debates mais contemporâneos sobre o assunto ao reconhecer o lugar do privilégio, ao negar uma abordagem assistencialista, ao reafirmar um compromisso com as transformações estruturais e ao garantir o protagonismo do território.

A condição feminina é outra entrada. Neca aponta que “ser mulher” moldou seu percurso. Única filha entre os irmãos homens e a pioneira na família a conjugar os legados do pai e da mãe com sua ação social e política, ela afirma que ao longo da sua vida esteve em busca de modelos de liderança sem emular as referências masculinas.

Ser mulher também impacta a forma como ela é apresentada e representada pela imprensa. “Herdeira”, “banqueira”, “bilionária”. Os mesmos atributos, no entanto, não são usados para descrever figuras públicas masculinas que também são “herdeiros” . Pelo menos não com tanta recorrência. É inevitável, como sublinha Neca, creditar tais escolhas ao machismo.

Frentes de ação

O capítulo sobre sua participação política de forma mais direta talvez seja o mais interessante. Ainda que trate da formação da Rede como partido e das campanhas de Marina Silva à presidência, ele é extremamente atual. Mostra que a fragmentação do chamado campo progressista não é nova, que a política é um lugar de extrema violência prática e simbólica, que essa violência se acentua em se tratando de mulheres. Todos temas que nos ajudam a pensar o presente.

É também um capítulo inspirador. Para ela, não há possibilidade de transformação sem a política. Descreve como a construção de alianças muitas vezes improváveis se mostrou um projeto de fôlego com reverberações relevantes até os dias atuais, quando a articulação de diversos setores da sociedade brasileira em defesa da democracia foi fundamental.

Acompanhamos algo raro, uma mulher, filantropa, parte da elite do país, com leitura política da realidade e com disposição para se colocar diante da conjuntura. Não apenas em momentos mais evidentes, como quando declarou publicamente seu apoio político ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022, mas também quando discute em detalhes, por exemplo, os programas do Ministério da Educação, ou a abordagem de protagonismo territorial em um projeto de desenvolvimento comunitário ou, ainda, no seu investimento pessoal de letramento racial que culminou em um compromisso com o tema em muitas frentes. Neca participou do governo de transição, foi cotada para o Ministério da Educação, atualmente faz parte do “Conselhão” e está envolvida com o Pacto Nacional pelo Combate à Desigualdade.

Senti falta de um personagem fundamental nessa história: o dinheiro. Percorremos uma trajetória repleta de realizações. Mas Neca foi capaz de construir iniciativas tão relevantes e bem sucedidas como o Cenpec, a Fundação Tide Setubal ou seu empreendimento rural porque decidiu usar seu dinheiro dessa maneira. Isso não reduz o valor do seu trabalho ou de sua trajetória. Fica evidente para o leitor como sua formação, visão de mundo e vontade de transformar são seus grandes motores. Mas o dinheiro aparece como um subtexto e o Brasil atual não é um país que comporte subtextos. Precisamos ser explícitos em relação às responsabilidades do capital. Temos, afinal, uma elite que também poderia fazer e não faz.

As relações de afeto e amizade têm lugar de destaque ao longo do livro. Não de uma forma banal ou romanceada, mas como força de realização. Além de enfatizar que nada se faz sozinha, Neca se coloca como uma pessoa que cultiva relações. Quando fala da filha e seu trabalho na fundação, da relação de amizade com Marina Silva e Sueli Carneiro, está falando de afeto, troca, confiança e solidariedade.

O lindo prefácio de Sueli Carneiro é mais um testemunho do valor e do poder daquilo que se constrói nas amizades. Mas é mais do que isso: é uma sinalização de que há um lugar de reencontro e construção coletiva possível num país tão desigual e diverso. Para que isso aconteça de fato, no entanto, são necessários deslocamentos radicais. O livro mostra como é preciso enfrentar de maneira honesta os abismos que marcam muitas de nossas relações pessoais e sociais, assumir nossas responsabilidades em relação à reparação e à transformação e acreditar que temos todos a ganhar e a desfrutar de um “país ético, justo e sustentável”.

Nota do editor

A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros

Quem escreveu esse texto

Paula Miraglia

Antropóloga, é fundadora do jornal Nexo e diretora-geral da revista Gama.

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.