Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Festas e pensamento social

Único livro de autoria individual de Lélia Gonzalez publicado em vida apresenta festividades como contadoras da formação da sociedade brasileira

30jul2024 • Atualizado em: 13ago2024 | Edição #84

Quando cursei a disciplina de pensamento social brasileiro, no período em que estudei sociologia e política, tive uma imensa expectativa. Esta não foi totalmente frustrada, mas esperava mais. Foi extremamente prazeroso compreender os pensamentos de Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Roberto DaMatta, Octavio Ianni, Darcy Ribeiro, dentre outros pensamentos fundamentais sobre o Brasil. E, como não desconsidero obras seminais, ainda que divirja delas, também foi estimulante a leitura atenta e os debates em torno das obras de figuras como Gilberto Freyre.

Desfile de escola de samba. Fotografia de Januário Garcia em Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez (Divulgação)

É preciso conhecer e entender para produzir análise e crítica. Mas senti falta de outros nomes que compunham perspectivas e compreensões que tive no decurso do envolvimento com a ação militante e que também são fundamentais para conhecermos o Brasil, como Guerreiro Ramos, Virgínia Bicudo, Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Davi Kopenawa e Lélia Gonzalez.

A ausência de pensadores desse calibre em uma disciplina tão fundamental em um curso de sociologia, além de gerar desconfortos, me fez refletir sobre as problemáticas e limitações para compreender o Brasil, principalmente na formação de futuros estudiosos da sociedade. 

O livro Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez é, a meu ver, um exemplo das problemáticas às quais estamos submetidos e assim permaneceremos caso não reformulemos o que reivindicamos como pensamento social brasileiro. Com o primeiro lançamento em 1987, em uma pequena tiragem, a única obra produzida exclusivamente por Gonzalez publicada em vida, ainda que tenha alcançado prêmios na Feira de Leipzig, em 1989, não era de fácil acesso.

Nela, a antropóloga e pensadora brasileira apresenta importantes festejos nacionais. Mas não só. Com uma descrição arguta de quem domina o fazer etnográfico, ela nos apresenta a origem e formação de manifestações culturais equilibrando pílulas de como compreende essas festividades como contadoras da formação da própria sociedade brasileira.

É nas festas populares que negros reconstituem e reformulam seus sistemas de crenças e cultura

Gonzalez explora como nossa compreensão do que são festas populares, como o Carnaval, hoje símbolo de identidade nacional, as festas juninas, o bumba meu boi, as festas afro-brasileiras e seus afoxés, bem como as festas natalinas, entre outras, pode nos ajudar na percepção sobre nossos problemas e, fundamentalmente, sobre quem somos como nação. 

Como a própria autora alerta: “A violência da escravidão caracterizou–se não só pela ruptura dos referenciais básicos da sociedade africana, como pela cuidadosa mistura das diferentes etnias, demonstrando grande eficácia na destruição de estruturas sociais”. O que Gonzalez demonstra é que há um “duplo ajustamento” de escravizados à sociedade brasileira, que, numa ampla multiplicidade étnica, se viam obrigados a forjar uma nova identidade. Há, portanto, um processo de resistência/acomodação” na relação da cultura civilizatória de escravizadores e a cultura cívica de existência de escravizados — ressalte-se que não uso, aqui, a expressão “civilizatória” de maneira positiva, mas reafirmando que a ideia de agenda civilizatória ocidental é indissociável da expropriação, exploração e escravização de povos pelo mundo.

Lélia Gonzalez rechaça a ideia de “sincretismo” como característico do “sistema de crenças dos negros brasileiros”, posto que, em verdade, havia ginga e inventividade das mais sofisticadas para aproveitar das “exteriorizações da religião católica para sobreviver com o próprio culto”. É, então, nas festas populares, a partir de um calendário religioso da colonização, que negros reconstituem e reformulam seus sistemas de crenças e cultura.

Essa relação tensa e conflitiva, a despeito das romantizações sociológicas sobre a formação do Brasil ainda tão entranhadas no senso comum, somadas a um processo tão brutal com os povos originários desta terra, criam esse amálgama contraditório da formação social brasileira.

Entendimento incompleto

O que Gonzalez nos adverte é que a ausência dessas perspectivas ao pensarmos o Brasil resulta em entendimento incompleto das dinâmicas sociais do país. Sem esses pontos de vista, lugares de fala, não há compreensão refletida nas complexidades da realidade social brasileira. E essa é, sem dúvida, uma face importante do racismo estrutural, inclusive para entendermos como, de fato, ele se perpetua e se reinventa no país. Refletir sobre isso é produzir crítica que nos garanta uma inflexão necessária para construirmos propostas que atendam plenamente as necessidades e as realidades do Brasil, criando uma teia complexa de entendimento e proposições às nossas problemáticas históricas ainda tão presentes.

Esse tipo de ausência pode, ainda — principalmente quando pensamos na formação de estudantes — nos levar a uma sensação de desconexão entre teoria e reflexão sobre o país e a realidade que vivemos. A exclusão desses pensadores priva estudantes de um patrimônio intelectual valioso que oferece análises críticas e profundas sobre a sociedade brasileira e que questionam efetivamente as estruturas de poder e dominância sócio–racial. Essas críticas são essenciais para desconstruir as narrativas hegemônicas que perpetuam a desigualdade e a injustiça. Sem essas vozes, ficamos limitados, pouco ou nada críticos e incapazes de produzir as saídas de que tanto precisamos.

Com esse relançamento, em uma edição riquíssima com registros fotográficos de Walter Firmo, Januário Garcia, Marcel Gautherot, entre outros, espero receber notícias de pessoas que passaram a ler Lélia Gonzalez em currículos fundamentais de sociologia pelo país. É um reconhecimento mínimo de uma pensadora que, sem dever a ninguém, deu uma contribuição inegável para tomar seu lugar no panteão de clássicos do pensamento social brasileiro. Axé, Lélia.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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