

Perspectiva amefricana,
Sobrevivência em Barbados
Com escrita afiada, romance de estreia de Cherie Jones expõe as conexões entre gênero, classe e violência, refletindo realidades familiares
01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91 marHow The One-Armed Sister Sweeps Her House (Como irmã de um braço só varre a casa”, em tradução livre) é um romance visceral. Carrega a ironia do título e a contradição entre a paisagem paradisíaca e a violência que domina as vidas ali narradas. O livro marca a estreia de Cherie Jones, autora de Barbados, com uma escrita sublinhada pela brutalidade interseccionada em gênero e classe, sem deixar de lado a complexidade das personagens.
A figura central é Lala, uma jovem negra que cresce ouvindo uma parábola de sua avó, Wilma, sobre a “irmã de um braço só”: uma menina curiosa que desobedece os pais e sofre as consequências disso. A história é contada e recontada como um alerta sobre os perigos que espreitam as mulheres que fogem das expectativas sociais. No decorrer da narrativa, percebemos como a parábola permeia destino, resistências, fugas, retornos e perspectivas. Não é um título aleatório. Ele dá a liga ao romance, ainda que muitas outras percepções sejam aguçadas e caminhos sejam escritos.

Lala, sua mãe Esme e a avó Wilma representam três gerações de mulheres que vivem ciclos de violência e silenciamento. Na fábula da avó, o silêncio e a quietude são formas de sobrevivência, como se Wilma ensinasse a Lala e Esme que a brutalidade é inevitável. Ao passo que Esme tenta se adequar aos alertas da mãe, Lala, influenciada por esses legados, se vê enfrentando o mesmo dilema entre o silêncio e o rompimento desse ciclo. O romance ainda apresenta a figura de Mira, personagem distante da realidade social de Wilma, Esme e Lala. Uma mulher branca e rica, mas também vitimada pela violência patriarcal.
A maneira como Jones trabalha essas camadas remete a estudos iniciados pela feminista Heleieth Saffioti. Ainda que pouco lembrada pela nova geração de feministas, Saffioti foi uma das pensadoras mais profícuas sobre as imbricações entre gênero, classe e violência. A socióloga apontou vínculos intraclasse entre mulheres ao tratar do tema, demonstrando as nuances dessas violências — mais mascaradas em círculos das classes média e alta, mas ainda persistentes.
Enquanto Lala e sua família vivem e enfrentam as amarras de classe e raça, Mira está aprisionada pelo gênero e por expectativas sociais de um papel que deve ser por ela performado e no qual se vê, também, desprotegida. Com isso, a autora nos lembra que a violência contra as mulheres não escolhe classe ou raça, mas que suas manifestações e consequências são determinadas pela sobreposição de outras desigualdades estruturais. E onde ficam os homens nisso tudo?
Barbados se tornou quase sinônimo de Rihanna, mas ler Jones mostrou que a ilha tem muito mais a oferecer
Os homens de Paradise, o cenário caribenho do romance, são tanto perpetuadores quanto vítimas de um modelo de masculinidade baseado no poder e na violência. O que Jones nos mostra é que o patriarcado impacta a vida de todos: pela afirmação de uma masculinidade hegemônica bruta que impõe medo e dor — e que se impõe aos homens também de forma violenta pelos abusos invizibilizados de meninos, dentre outros traumas não processados.
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Essa dinâmica faz com que seja preciso — como representado em uma das personagens, Tone — engolir a dor e se tornar o predador antes de ser presa. Essas contradições são muito bem exploradas pela autora, que não tenta equiparar vitimização patriarcal, mas que também se recusa a tratar homens de maneira unidimensional. A violência é ensinada e transmitida em dinâmicas de definição pela brutalidade. As escolhas, portanto, são devastadoras para eles mesmos, mas sobretudo para as mulheres ao seu redor.
Justiça
O que fez meus olhos brilharem durante a leitura, para além da escrita envolvente de Jones, foi como a autora, que também é advogada, trabalha as questões de justiça e crime. A violência permeia Paradise não por acaso, mas como resultado de um sistema que não foi constituído para a proteção de determinadas vidas. A narrativa nos conduz a questionamentos sobre o papel das leis, a ausência proposital de suporte e acolhimento para mulheres como Lala, refletindo realidades conhecidas, onde a lei pode até existir, mas sua aplicação está longe de ser equitativa. Parece familiar para você?
Essa abordagem me fez pensar o romance em diálogo com formulações sobre abolicionismo penal. A justiça, como a que existe em Paradise, não é solução real para o que aquelas personagens vivem, assim como não é para o que vivemos no mundo. O silêncio é uma imposição, um mecanismo de opressões de gênero, raça e classe. Ou não somos chamados de “mimizentos” e “identitários”, sendo essa uma forma de desqualificação daquele que é dito como outro por um suposto universal tão identitário quanto?
Para alguns, como Wilma, o silêncio acaba sendo adotado como forma de proteção. Mas até que ponto silenciar protege? Não seria preciso encontrar a própria voz para romper ciclos de violência? Essas perguntas me levaram a bell hooks, quando a autora discute como o amor e a cura são impossíveis dentro de sistemas que normalizam o abuso e o silêncio. Cherie Jones não nos entrega um final redentor ou fácil, mas nos deixa com a força de um ato de resistência.
Ler esse livro foi uma jornada de descobrimento incrível e de reconhecimento afrodiaspórico. A escolha de autores de outros contextos americanos me levou ao encontro de um rico cenário literário caribenho que ainda é pouco lido e estudado fora de suas fronteiras. Com uma prosa afiada, a narrativa de Jones foi finalista do Women’s Prize for Fiction em 2021.
É curioso como, no imaginário popular, Barbados se tornou quase sinônimo de Rihanna, mas ler Jones me mostrou que a ilha tem muito mais a oferecer em termos de cultura e pensamento crítico. A literatura barbadiana, assim como a de outras nações caribenhas, traz narrativas que desafiam as visões estereotipadas da região e ampliam nosso entendimento sobre a experiência negra nas Américas.
As mulheres de Paradise vivem sob ameaça constante, mas, dentro desse ambiente hostil, também encontram momentos de solidariedade e desejo de liberdade. Não parece familiar?
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025.
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