“Madre e hija” (1982), fotografia de Adriana Lestido. Protesto na Praça de Maio em Buenos Aires (Governo da Argentina/Reprodução)

Perspectiva amefricana,

Ainda estamos aqui

O grito por justiça de mães e familiares, tanto ontem quanto hoje, é por liberdade: de existir, de ter seus direitos reconhecidos, de viver sem medo

01fev2025 | Edição #90 fev

O Brasil é um país de memória fraturada e que segue atravessado por uma herança autoritária que insiste em reverberar. Para muitas famílias, esquecer nunca foi uma opção. Nas ruas e praças, nas salas abafadas dos tribunais, nos corredores intermináveis das delegacias, as mães e os familiares de desaparecidos e vítimas da violência estatal mantêm viva uma chama que o autoritarismo jamais conseguiu apagar. “Ainda estamos aqui”, repetem em seus gestos, em seus gritos carregados de significados.

Ao assistir a Ainda estou aqui, fui profundamente tocada. Na hora, relacionei a figura emblemática de Eunice Paiva às mães de vítimas da violência contemporânea do Estado. Histórias de angústia, de percursos em hospitais, imls, em praças e terrenos baldios buscando um traço, uma pista. No entanto, o que essas mães encontram é o silêncio do Estado. Mas insistem. Elas teimam em lutar ante o apagamento. Ainda estamos aqui. 

O filme ressoa em mim como um eco permanente. Abre uma janela de reflexões que transbordam: as práticas de desaparecimento forçado e de violência sistêmica nunca cessaram, apenas mudaram de forma e de narrativas. Os desaparecidos de ontem ecoam nos jovens negros e pobres mortos hoje nas periferias. A tortura nos porões do doi-codi encontra sua continuidade nos becos e vielas, nos aparatos estatais repressivos remodelados do país. 

Guardiãs de memórias

Ao lembrar das Mães da Praça de Maio, na Argentina, lembro das mães daqui, do Brasil, que marcham, resistem e desafiam o esquecimento. Penso em dona Débora Silva, que lidera o movimento Mães de Maio, penso em dona Rute Fiuza, penso em Ana Paula de Manguinhos, penso em dona Miriam e dona Raílda, da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Presas e tantas outras que seguem em denúncia incansável à violência estatal. Mulheres guardiãs de memórias, que são constantemente feridas e insistem em não permitir que ninguém se esqueça. E ainda mantêm o sorriso, o abraço mais reconfortante que possa existir. Seguem mães. Sempre. 

Ainda estamos aqui. Persistindo em não permitir sermos varridos para as margens da história. A resistência aqui, assim como a insistência no sorriso, é construir outras narrativas. É como contar e recontar histórias de quem se foi e trazer nomes aos números, trazer histórias às estatísticas, transformar ausências forçadas em presenças simbólicas de força interpelando o presente. 

Os desaparecidos de ontem ecoam nos jovens negros e pobres mortos hoje nas periferias

O Brasil mantém uma relação cheia de ambiguidades com o autoritarismo. Muitos ainda relativizam, proferem votos no Congresso Nacional que homenageiam torturadores “brilhantes”. Mas a verdade é que esse passado não é evento encerrado; ele se reinventa. Por isso a importância de lembrar, recontar e jamais esquecer. Para que a luta de Eunice Paiva não tenha sido em vão. Para que a luta dessas mães da contemporaneidade não seja em vão. Para que cesse o sangramento. Para que justiça não seja apenas espaço de representação dos interesses de alguns, mas respeito aos direitos de todos.

Memória, verdade, justiça e reparação são pilares indispensáveis para qualquer sociedade que deseja superar traumas. Do sistema escravocrata ao regime militar, a violência do Estado contra corpos negros, indígenas e pobres foi institucionalizada, mas também sistematicamente naturalizada. Sem a verdade, não há como compreender o presente. Sem justiça e reparação, as feridas permanecem abertas, perpetuando um ciclo de exclusão e sofrimento. As lutas por liberdade sempre enfrentaram barreiras impostas por forças que desejavam manter a opressão: dos quilombos que resistiam ao sistema escravocrata aos movimentos que desafiaram os anos de chumbo, a linha da resistência se estende até os dias de hoje, nas batalhas travadas contra o genocídio da juventude negra nas periferias.

A escravidão criou a lógica de que certos corpos podem ser descartáveis; a ditadura aperfeiçoou o uso do terror para controlar e eliminar opositores; e o Estado democrático, tantas vezes cúmplice, permite que essas práticas se perpetuem sob novos disfarces. O grito por justiça das mães e familiares, tanto ontem quanto hoje, é um grito por liberdade: a liberdade de existir, de ter seus direitos reconhecidos, de viver sem medo. Memória, verdade, justiça e reparação são exigências urgentes para o presente e para o futuro.

Enquanto esse dia não vem, seguimos. O silêncio nunca foi uma opção para os que combinaram de não morrer. E o esquecimento, para quem carrega tantas ausências, é um luxo que não podemos nos permitir. Ainda estamos aqui. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Ainda estamos aqui”

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