Perspectiva amefricana,
Ano novo, velhas fronteiras
Uma resolução literária para 2025: abrir a janela para vozes e universos de países do continente americano — leituras que criam um redesenho geográfico afetivo
01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janNo caderno que inaugurei para o novo ano, rabisco listas e promessas como quem planta sementes, sem saber ao certo o que brotará. Há algo de encantador na ilusão dos recomeços: como se a virada de um ano fosse capaz de apagar a bagunça acumulada em tantas outras estações. Mas gosto do ritual. Gosto de fingir que tenho algum controle sobre os próximos doze meses. Planejo como se fosse engenheira de destinos, sabendo, no fundo, que a vida costuma rir desses mapas tão meticulosamente desenhados.
Talvez o maior desafio literário de 2025 não seja escrever com mais coragem, mas ler com mais atenção. Ler além do que nos cerca, além dos muros invisíveis que construímos para organizar o que chamamos de “nossa literatura”. Olhamos para a literatura do norte com a reverência costumeira de quem espera direções de um farol distante. Mas continuamos ignorando muito do que é produzido nas Américas como se fossem parentes afastados em uma reunião familiar.
Sempre me coloco um desafio de leitura. Já houve o ano das mulheres, dos clássicos, de escritores negros brasileiros e por aí vai. Sempre há uma temática a ser explorada na literatura. E decidi me desafiar em 2025 na ampliação do meu escopo literário de países do continente americano. No começo, pareceu uma ideia simples, mas quando comecei a listar os nomes que conheço, senti um misto de vergonha e curiosidade diante da minha tão limitada noção do que se escreve além de nossas fronteiras e das sombras de algumas potências literárias.
A literatura produzida no Caribe, por exemplo, é, para mim, um continente de vozes à espera. Algumas já publicadas no Brasil, como Jamaica Kincaid, de Antígua e Barbuda (A autobiografia da minha mãe e Annie John); Maryse Condé, de Guadalupe (O coração que chora e que ri e O evangelho do novo mundo, entre outros); e Junot Díaz, da República Dominicana (vencedor do Pulitzer com seu A fantástica vida breve de Oscar Wao e também autor de É assim que você a perde), dão a perceber o quanto suas narrativas ecoam grande força histórica e cultural que não se pode ignorar. Há ali, em cada romance, em cada ensaio, uma linguagem forjada no calor do encontro entre o Atlântico e o Pacífico, entre colônias e resistências, entre ancestralidade e desejo.
Talvez o maior desafio literário de 2025 não seja escrever com mais coragem, mas ler com mais atenção
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Mas percebi que fico aquém desses escritores. Pouco sei sobre o que se cria em países vizinhos, como Suriname e Guiana. Vemos tanto se falar sobre o Haiti em matéria de tragédias, no êxodo forçado diante da catástrofe e das dificuldades, mas e sua literatura? Quantos são os universos que quase nunca alcançam nossas prateleiras, mas estão desejantes de serem decifrados, como os de Belize, Barbados, El Salvador, Jamaica, Panamá e Trinidad e Tobago?
Diálogo com vizinhos
O desconhecimento atua como fronteira que nos separa de histórias que poderiam nos expandir, de vozes que dialogam com dilemas distintos e próximos ao mesmo tempo. O que conhecemos e o que de nós eles conhecem? O desafio posto, talvez, seja mais do que uma curiosidade literária: uma vontade de furar bloqueios silenciadores invisíveis. Às vezes penso que as fronteiras linguísticas funcionam como um pacto de esquecimento. Falamos tanto sobre globalização, mas ignoramos nossos vizinhos mais próximos. Atravessar essas barreiras exige um esforço ativo — não apenas de leitores, mas também de tradutores, editores e educadores.
Penso na riqueza que poderia emergir se ampliássemos o diálogo com essas narrativas. Como seria ensinar literatura realizando diálogo com autores como Cherie Jones, de Barbados, e seu livro visceral que desafia visões idílicas que possamos ter sobre o Caribe? Ou se falássemos mais de Dany Laferriére, do Haiti, que já esteve no Brasil, com o seu Como fazer amor com um homem negro sem se cansar (Editora 34), para ampliarmos e aprofundarmos discussões sobre masculinidades negras, estereótipos, o poder da literatura em questionar o status quo, quando assim quiser ser utilizada? Que novas interpretações de nosso próprio passado surgiriam ao confrontarmos as memórias e os traumas compartilhados em textos de outras latitudes americanas? Também gosto da ideia de como essas leituras podem configurar um redesenho geográfico afetivo, onde cada autor atua como um cartógrafo que desenha mapas reais e fabulações.
E, assim, me vejo: caderno em mãos, desajeitada diante de mapas que nunca explorei, disposta a arriscar, ansiosa por um ano de travessias e encontros. Volto ao caderno e escrevo o nome de um autor jamaicano de quem ouvi falar: Marlon James. Em seguida, marco Derek Walcott, Nobel de Literatura em 1992, de Santa Lúcia e que não pode faltar. Viajo para outros idiomas e anoto Edwidge Danticat, do Haiti; María Fernanda Ampuero, do Equador; e algumas várias interrogações em outros países que quero avançar para além dos mais reconhecidos, como é o caso do Peru e Mario Vargas Llosa. Imagino que, talvez, este ano não seja tão diferente dos outros, exceto pelas janelas que serão abertas.
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Ano novo, velhas fronteiras”
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