Política,

Elas resistem, a democracia resiste

Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federeci destacam a força das mulheres negras na luta democrática

28mar2024
As ativistas e intelectuais Patricia Hill Collins, Angela Davis e Silvia Federici [Artur Renzo/Taba Benedicto/Divulgação]

Em outubro de 2019, aconteceu em São Paulo um encontro quase que premonitório. O seminário Democracia em Colapso?, assim, em forma de pergunta, indicaria que sim, a democracia estava agonizando. O seminário, organizado pelo sesc e pela editora Boitempo, teve suas conferencias publicadas no livro Democracia para quem? Ensaios de resistência (2023), nos permitindo olhar para o passado recente e suas continuidades no presente.

Ninguém menos que Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici, ativistas e pensadoras dos desmandos do capitalismo nas Américas e na Europa, foram convidadas para compartilhar suas perspectivas sobre o avanço da extrema direita, o crescimento das tendências neonazistas e supremacistas brancas. Era outubro e ainda não podíamos imaginar que um vírus mortal colocaria a própria existência humana sob ameaça. No Brasil, vivíamos a agonia das eleições que acabaram por, democraticamente, eleger um presidente que abalaria nossa democracia já abalada, com apoio de militares, milicianos, fundamentalistas, armamentistas e defensores da restrição de direitos e cidadania.

Eliane Dias, Winnie Bueno, Adriana Ferreira Silva, Raquel Barreto, Bianca Santana, mulheres negras brasileiras atuantes no debate público sobre o lugar das mulheres negras na sociedade brasileira e do papel delas e dos movimentos sociais na luta antirracista, foram potentes interlocutoras nesse debate, ora trazendo a perspectiva brasileira, ora apontando as especificidades dos desafios da democracia neste país que abriga a maior população negra das Américas e, também, os maiores números de letalidade policial, feminicidio, transfeminicidio e desigualdade, além da criminalização de mulheres e homens negros.

O Brasil é ponto de convergência de um movimento liderado por mulheres negras

O papel do escravismo, do capitalismo e do patriarcado surgem nas análises de Davis, Collins e Federici de forma consensual: o escravismo moderno inventou e elegeu o corpo negro como aquele que seria desumanizado, ao passo que enriquecia as elites enquanto as sociedades construíam o discurso democrático que supostamente regeria suas nações. Como lembra Davis, foi sob o escravismo que os Estados Unidos declararam a Independência na qual “todos os homens [sim, os homens] são iguais”. O mesmo aconteceu com o Brasil, que seguiu escravista mesmo depois de adotar o discurso de liberdade em relação a Portugal. A liberdade tinha cor. Foi nesse período que a Europa estabeleceu que cidadão era sinônimo de homem branco.

Outro ponto de convergência entre as três intelectuais é o entendimento dos movimentos populares, sobretudo aqueles liderados por mulheres negras, como principais propositores de valores verdadeiramente democráticos, inclusivos e coletivos para as sociedades contemporâneas, em crise moral e politica. Para Davis e Collins, é no movimento de mulheres negras que podemos identificar propostas de bem-viver para toda a sociedade, uma concepção coletiva ampla como único caminho para uma sociedade verdadeiramente democrática, que ainda esperançamos. É Davis quem nos diz que, mesmo as supostas “grandes democracias”, desiguais por natureza, sustentadas no capitalismo e no encarceramento de homens e mulheres negras, são modelos não democráticos.

Dias melhores

Collins atesta o papel fundamental desses movimentos na sua perspectiva interseccional: o fator gênero torna-se definitivo numa sociedade democrática. No Brasil, mulheres, sobretudo negras, são a maioria das trabalhadoras informais e recebem menos que os homens que desempenham tarefas similares. Portanto, o direito ao emprego formal, ao salário digno, fundamentais à democracia, depende de políticas de creche e de apoio às mães, por exemplo. Políticas generalizantes, que não levam em consideração as especificidades de homens e mulheres no cotidiano e no trabalho, mantêm desigualdades. Além disso, o feminismo negro, base teórica e ética de muitos desses movimentos sociais, também é sustentado na política da esperança: a crença em dias melhores e naquilo que Collins chama de noção de justiça social, que é a inconformidade com a desigualdade como princípio das lutas de movimentos sociais.

Federici fortalece nossa política da esperança quando demonstra como a luta antirracista não é responsabilidade apenas das pessoas negras. O reconhecimento do impacto da luta antirracista pode ser visto quando ela aponta a continuidade de um processo de “caça às bruxas” contemporâneo, no qual as ações de mulheres, sobretudo negras, são motivo das políticas que promovem sua criminalização, desassistência, exploração, controle do corpo e da sexualidade e demonização. Isso nos faz pensar no Brasil de Marielle Franco, Claudia da Silva, Nega Pataxó (Maria Fátima Muniz de Andrade), Mãe Bernadete (Maria Bernadete Pacífico), das mulheres negras e indígenas brasileiras que desafiavam o supremacismo branco, o patriarcado e a ganância do capital que orienta projetos políticos excludentes.

Ao praticar de diversas formas a tradição de desobediência epistêmica e ao promover rupturas dentro de sociedades capitalistas, que são democracias frágeis e cambaleantes, as ativistas e sobreviventes das classes populares reforçam aquilo que é dito por Davis, Collins e Federici: o Brasil atual é esse ponto de convergência, de resistência, de tradição ancestral, de um movimento político popular inspirador e vibrante, liderado por mulheres negras. Raquel Barreto afirma isso ao lembrar de Lélia Gonzalez. O Brasil, como aponta Davis, é que deve ser escutado pelo mundo.

Por mais longe que esteja o horizonte de uma democracia efetiva, os caminhos da luta política podem estar aqui devido à energia dos movimentos sociais liderados por mulheres negras —pode não parecer óbvio para nós, mas sob o olhar dessas três ativistas isso é completamente possível.

Quem escreveu esse texto

Luciana Brito

Doutora em História pela USP, é professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora de O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil (Barzar do Tempo, 2023)