Os escritores norte-americanos Cornel West e bell hooks (Angeletta K. M. Gour/Divulgação)

Perspectiva amefricana,

Intelectualidade insurgente

No país em que o pensamento negro segue sendo enquadrado como militante, bell hooks e Cornel West nos questionam sobre o que molda um intelectual

29abr2025 • Atualizado em: 12maio2025 | Edição #93

Sempre me pergunto se pensar criticamente pode ser um lugar seguro para mulheres negras como eu. A expectativa para que sejamos fortes, úteis e disponíveis pesa nos ombros, somada à dúvida sobre se nossa voz vale ser ouvida. O encontro de bell hooks e Cornel West, dois dos principais teóricos do pensamento antirracista, em Partindo o pão: vida intelectual negra insurgente me atravessou como um espelho e como um abrigo. Não apenas porque encontrei reflexões sobre o que significa ser uma pessoa negra pensando o mundo de forma crítica, mas porque senti a cada página que não estou sozinha e que o exercício do pensamento pode ser uma forma radical de amor e sobrevivência para nós.

A leitura, numa conjuntura política brasileira permeada por retrocessos e resistências contínuas, nos lança a lugares que nunca habitamos, mas que sempre soubemos ser nossos. Não há só o compartilhamento de trajetórias, mas um banquete onde se partilha o alimento intelectual com quem lê e sente o silenciamento e a desconfiança de instituições e cinismos de parcelas das esquerdas que fetichizam a experiência negra sem escutar ativamente nossas demandas. 

A escritora norte-americana bell hooks em 2018 (Holler Home/The Orchard-Kobal/Encyclopedia Britannica/Reprodução)

Há um exercício generoso no diálogo entre autores que posicionam o amor, o cuidado e a solidariedade entre mulheres e homens negros como formas de resistência, práticas políticas, éticas de confronto e oposição à masculinidade hegemônica e à branquitude autorreferenciada. Ler esse livro agora é um gesto político não apenas pelo valor da obra, mas porque chega em um momento em que o Brasil vive um tensionamento profundo sobre os sentidos da negritude, da intelectualidade e do futuro. Em um país onde a presença negra nas universidades ainda é recente e cercada por disputas, onde o pensamento negro segue sendo enquadrado como militante e não como produção legítima de conhecimento, Partindo o pão nos questiona sobre o que molda um intelectual negro.

Mais que uma conversa, o livro é uma cartografia da amizade entre um homem e uma mulher negros. A dupla nem sempre concorda, mas é visível como se admiram, se provocam proficuamente, se escutam. É como um lembrete da urgência de alianças negras mesmo quando permeadas por conflitos. bell hooks, como sempre, cobra responsabilidade afetiva de homens negros. West, por outro lado, rememora a experiência cotidiana que os brutaliza e hipersexualiza mulheres negras. Ambos dispostos a aprender com o outro, em um exercício de comunidade e um gesto político que precisamos cultivar.

‘Pretos no topo’ é um exemplo de esvaziamento do caráter coletivo da luta por emancipação

Para West, a tradição profética do cristianismo negro, que ele reafirma como herdeira dos movimentos de libertação da escravização na luta pelos direitos civis, soma espiritualidade e a demanda por justiça social. No Brasil, contudo, a relação não é direta e se dá muitas vezes de forma conflituosa. Embora as igrejas neopentecostais tenham uma base majoritariamente negra, reproduzem, em sua maioria, a branquitude como paradigma e ideal de conduta, demonizando religiosidades afro-brasileiras e reforçando narrativas meritocráticas e individualistas. Essa diferença revela como a espiritualidade pode ser tanto instrumento de alienação quanto de libertação, cabe a nós escavar e fazer emergir raízes libertadoras. 

A intelectualidade negra, com frequência, enfrenta dilemas dolorosos entre buscar reconhecimento nas estruturas acadêmicas, majoritariamente brancas, laicas e com paradigmas europeus, e o distanciamento que isso ocasiona das formas populares e coletivas de produção de conhecimento que sempre estiveram no cerne da experiência negra. Um exemplo é o interesse de Lélia Gonzalez pela cultura popular brasileira e suas raízes profundamente negras e ameríndias, a necessidade de levar a sério esses saberes e linguagens constitutivos de uma “identidade nacional”. 

O escritor norte-americano Cornel West em 2018 (Gage Skidmore/Reprodução)

hooks e West alertam ainda para o cuidado com os limites da cultura pop, principalmente quando absorvida pela lógica neoliberal. O discurso de “pretos no topo” é um exemplo de esvaziamento do caráter coletivo da luta por emancipação porque desconsidera que, se há topo, há também uma base explorada e brutalizada. O que fazemos, então, com nossas vitórias quando elas servem de exceção para manter a roda girando? Será que queremos nos sentar à mesa do capitalismo ou derrubá-la para partilhar o pão de forma igualitária? O desafio está em não abandonar a cultura popular negra como fonte legítima de conhecimento, nem a crítica estrutural necessária para que essa cultura não seja só consumo, mas transformação.

Profeta moderno

West convoca a retomada de uma liderança negra que seja ética, espiritual e comprometida com a justiça, não apenas racial, mas humana. Nesse sentido, exalta James Baldwin que, embora falasse da e a partir da negritude, nunca se restringiu a ela. O filósofo apresenta Baldwin como um profeta moderno, cuja lucidez atravessou os limites da raça para denunciar as injustiças e o cinismo liberal. 

Já hooks denuncia limites impostos às vozes negras tanto pela branquitude quanto, por vezes, pela própria comunidade negra. A intelectual desafia a ideia de uma única forma legítima de fala ou escrita negra e reivindica o direito a múltiplas vozes. Os dois compartilham uma preocupação com o que chamam de “degradação de uma ética do cuidado e da responsabilidade” no mundo contemporâneo e evocam uma tradição negra enraizada no cuidado mútuo, na escuta, que, se não retomada, esvaziará qualquer tentativa de projeto político e intelectual. 

West propõe o “intelectual negro insurgente” que pensa com o povo, e não sobre o povo, e age como ponte entre pensamento e ação, entre rua e universidade. Para hooks, a atividade intelectual exige tempo, recolhimento e legitimidade, dimensões negadas a mulheres negras pelas estruturas de opressão racistas, capitalistas e sexistas. Ambos apostam em uma intelectualidade ética e amorosa, comprometida com a transformação coletiva. Pensar, nesse contexto, não é um luxo, mas um ato insurgente. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Intelectualidade insurgente”

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