Entre a brutalidade e a esperança

Perspectiva amefricana,

Entre a brutalidade e a esperança

RaMell Ross traduz para a tela o premiado Nickel Boys em uma mistura de denúncia e lirismo, exigindo que encaremos uma tragédia contínua

01abr2025 | Edição #92

Está cada vez mais difícil encontrar adjetivos para falar sobre algo impactante. Mas não posso fugir de comentar a visceralidade que me tomou ao assistir à adaptação cinematográfica que RaMell Ross fez de Nickel Boys. Assim que terminei, senti uma imensa necessidade de escrever. Pelo filme, mas, talvez, por uma característica do texto de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer em 2020 pelo título homônimo (aqui traduzido como O reformatório Nickel) e também autor de The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, cuja leitura causou a mesma necessidade em mim. 

Acredito que o encontro entre a escrita de Whitehead e a cinematografia de Ross ainda renderão muitas conversas por aí por sua capacidade de ressoar profundamente nas memórias e na política do nosso tempo. Se por um lado a escrita do autor captura a brutalidade da história, ainda que não se renda ao desespero, por outro a cinematografia do diretor traduz isso para a tela em uma mistura de denúncia e lirismo. 

O filme, assim como o livro, expande um campo de reflexão sobre o destino de corpos negros dentro das engrenagens de um sistema punitivo que, seja com reformatórios, fundações ou prisões, persiste como espectro que assombra e limita as possibilidades de vida das juventudes negras, indígenas e de grupos racializados. 

O reformatório Nickel é baseado na Dozier School for Boys, que funcionou na Flórida por mais de um século. Os rastros são de abusos, torturas e mortes. Meninos negros que foram enviados à suposta “escola de correção” viveram algo muito distante da reabilitação. O filme de Ross expande essa perspectiva no diálogo entre violência institucional do passado e dinâmicas contemporâneas de punição baseadas em hierarquias raciais. 

A história retrata a perda não só da liberdade, mas da temporalidade para esses jovens

O diretor tem uma filmografia que flerta com o experimental. Em Nickel Boys, o experimento se expande por meio da fragmentação narrativa que me levou a pensar em uma estética da punição. Ao narrar de forma não linear e apostar na justaposição de tempos e memórias, Ross cria um espelhamento do encarceramento que toma o tempo, que se arrasta e se repete. 

Ao ver o entorno pela lente dos protagonistas, os meninos Elwood e Turner, ganhamos a dimensão subjetiva da experiência no reformatório. O medo, a angústia, a indecisão, a confusão, as brechas de existência são transmitidas a nós de modo que nos sentimos parte e não apenas espectadores. 

A história é uma denúncia da perda não só da liberdade, mas também da temporalidade para esses jovens, como se o futuro se apresentasse impossível. E em uma luta contra uma estrutura que deveria, como promete, promover pertencimento e direitos. As personagens espelham essa luta entre a esperança ante o futuro e a sensação sufocante diante da brutalidade que impõe estratégias de sobrevivência no agora.

Brandon Wilson em cena de Nickel Boys (Reprodução)

A interação entre Elwood e Turner escancara um dilema da masculinidade negra: ser forte o suficiente para resistir, mas não se tornar alvo. Não há contentamento apenas com a exposição da violência sobre os meninos, mas o apontamento de que essas instituições, ainda que fisicamente fechadas, se perpetuam em outras roupagens, se multiplicando em diferentes formas de confinamento e controle. 

Isso é exposto no filme na forma como Ross trabalha os espaços. O reformatório é onde o presente nunca se dissipa, sob uma luminosidade opressiva. O desbotamento terroso na fotografia reforça uma história congelada no tempo e no trauma.

Se Elwood representa os que ousam acreditar em um futuro diferente, Turner encarna a dureza para seguir em um sistema que opera para controlar determinados grupos. Mas a interação entre ambos é de cumplicidade, mesmo em momentos de silêncio. Nessas passagens, senti como se Ross apresentasse a solidariedade como estratégia diante de um destino limitado que constantemente tenta, e muitas vezes consegue, se impor.

Peso da despedida

Há um detalhe meticuloso que se apresenta constante na personagem de Aunjanue Ellis, Hattie, avó de Elwood. E, aqui, contém spoiler grave, mas inescapável. A cena em que ela corta o bolo para Elwood me parece uma metáfora intensa. Ross filma esse momento com uma contenção que causa dor: a câmera fixa nas mãos dela, que tremem levemente enquanto deslizam a faca pelo bolo, como se, nesse gesto, ela representasse o peso de uma despedida. 

A fotografia é fundamental na cena, como em tudo para Ross — que também é professor de fotografia —, porque cria contraste com outras anteriores, em tons mais sóbrios. O som da faca na porcelana é uma antecipação dos traumas que Elwood carregará, como se verá representado em outra perspectiva futura. É um momento de partilha entre uma avó e seu neto, que cresceu sob discursos de Martin Luther King, ante a brutalidade do sistema. Reafirma-se amor e doçura. 

Ao invés de sugerir paliativos, Ross escancara um problema como regra e não exceção. Sua adaptação denuncia esse ciclo punitivo e exige que encaremos essa tragédia contínua — e, talvez, comecemos a conversar e agir para interrompê-la. Nickel Boys não é sobre o passado e é uma recusa da normalização de abusos. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “Entre a brutalidade e a esperança”

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