Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Escreva, mulher negra, escreva

Claudia Tate reúne entrevistas que ajudam a compreender o processo de escrita, problemáticas e tensões que perpassam as mentes de autoras fundamentais

01mar2024

Sempre que sou convidada para mediar alguma mesa em evento literário, separo perguntas referentes ao processo de escrita do outro. É inevitável, por ser algo que me fascina. Colocar reiteradamente a questão não significa esperar por uma fórmula mágica sobre a escrita, apenas sinto a necessidade de compreender processos, e acredito que isso enriqueça nossa percepção sobre a pessoa, seus caminhos, escolhas e a própria obra.


Vozes negras: a arte e o ofício da escrita, organizado por Claudia Tate

Em Vozes negras: a arte e o ofício da escrita, reunião de entrevistas realizadas por Claudia Tate com grandes escritoras negras, encontrei meu oásis. Cerca de quatrocentas páginas nas quais pude compreender mais as perspectivas de escritoras fundamentais, como Maya Angelou, Nikki Giovanni, Sonia Sanchez, Alice Walker. Toni Cade Bambara, uma escritora norte-americana central na discussão sobre consciência negra e feminismo, toca no meu interesse particular ao afirmar que ser escritor não precisa ser algo solitário. Há círculos de escritores negros, troca, caminho e encontro.

Minha identificação com Bambara não se resumiu a isso. Sobre o processo às vezes caótico, mas sempre particular, a autora explica que a escrita “era uma das coisas que eu fazia quando tinha tempo, ou quando uma compulsão me agarrava e me obrigava a me sentar” e que teve que “renegociar uma boa quantidade de relações que se despedaçavam” ao seu redor. Como fazer meu entorno entender que há momentos de interação, mas há o mergulho?

Ao longo da leitura, intercalei identificação e aspiração. A rotina de escrita — uma das minhas metas para 2024 ainda nada aplicada, ainda — de Maya Angelou e sua disciplina me fascinaram. A entrevista com Audre Lorde foi necessária pela renovação do sentido da escrita: “Escrevo para as mulheres que ainda não têm voz ou cujas vozes foram silenciadas”. (Lorde sempre demarcou a necessidade de rompermos o silêncio, que “nunca nos trouxe nada”.) Toni Morrison descortinou a ideia mística da inspiração, argumentando que essa deve ser articulada ao trabalho, mas nos desobrigando a forçar o texto, respeitando o “bloqueio criativo”. O texto tem seu tempo.

Desonestidade acadêmica

Em tempos nos quais se fala em “modismo” sobre a ampliação, ainda tímida, da publicação de escritores negros no mercado editorial mainstream, o livro ganha novos contornos e relevância. Várias das entrevistadas deixaram alfinetadas para a crítica literária que, no geral, tem apresentado leituras reduzidas e superficiais sobre a produção literária negra. Há aqueles que, por serem brancos, se recusam a analisar escritos de pessoas negras por acharem que não lhes cabe. Morrison foi certeira ao dizer que se trata de “desonestidade acadêmica”.

Esse tipo de afirmação limita, por um lado, a produção negra ao nicho e, por outro, considera pessoas negras personagens planas, reles auxiliares das personagens complexas e com dramas existenciais. Morrison afirma que se um autor escreve sobre algo que tenha “a ver com a vida e com a condição de ser humano no mundo”, então é possível que todos acessem aquela mensagem. Mas é fundamental apreender essa provocação e analisá–la olhando ao redor. Quem é convidado para resenhar escritores negros? Por que as resenhas de autores brancos são feitas sem pensar na raça e cor de quem desenvolverá a crítica? O que faz pensar que escritores negros não têm algo a dizer para todos nós?

Se, por um lado, as escritoras do livro divergem sobre uma mirada específica na escrita de pessoas negras, brancas, homens e mulheres, demonstrando a diversidade de processos e pensamentos em qualquer uma dessas categorias, é inegável que as experiências e as estruturas de opressão contribuam para uma representação, uma estratégia para verossimilhança diversa para tratar de um mesmo tema ou acontecimento. O que não compromete a possibilidade de, como leitores, sermos tocados pelo texto, independente da raça/cor de quem nos presenteou com sua imaginação.

Por que resenhas de autores brancos são feitas sem pensar na cor de quem desenvolverá a crítica?

Na apresentação de Vozes negras, escrita por Cidinha da Silva, esse incômodo se explicitou. Precisamos de mais que “esse livro é importante porque descortina o racismo” e outras generalizações que só corroboram o que a intelectualidade negra e pesquisas têm apontado: o racismo cega o reconhecimento do outro, o negro, em sua plena humanidade. Para uma crítica literária séria, é preciso analisar personagens, profundidade, ritmo, enredo, pontos de conexão com outras obras do autor, diálogos com outros autores e uma série de outras ferramentas. E isso é respeito e agnição de escritores negros como o que são: escritores e escritoras.

O livro é um presente para os que querem compreender processos de escrita, com problemáticas e tensões que perpassaram mentes brilhantes. No meu caso, foi também um incentivador. Sua mensagem segue ressoando, e a cada nova leitura, escuto como se Bambara e Lorde sussurrassem em meus ouvidos: escreva, mulher negra, escreva.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira