
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM


A FEIRA DO LIVRO 2025, Perspectiva amefricana,
Cartografia radical da abolição
Ruth Gilmore desmonta a narrativa de impossibilidade do abolicionismo penal em tempos de encarceramento em massa como política de Estado
27maio2025 | Edição #94Mais do que uma coletânea de ensaios (na qual assino o prefácio), Geografia da abolição: ensaios rumo à libertação é um campo de batalha e um caldeirão de reflexões. Em tempos em que a punição se tornou política pública e a morte um projeto de Estado, Ruth W. Gilmore, convidada d’A Feira do Livro deste ano, oferece não só uma crítica contundente ao encarceramento em massa, mas um mapa para reinventar o mundo.
As palavras da geógrafa norte-americana ultrapassam as fronteiras dos Estados Unidos e nos ajudam a pensar outros contextos onde a prisão se expandiu como resposta a crises, mascarando dilapidação social como ordem.

A compreensão da prisão como infraestrutura política, não como reação à criminalidade, é ponto de partida para a proposta de uma inversão teórica e prática: a prisão não emerge onde há mais crime, mas onde o capital não pretende investir. Assim, o cárcere torna-se forma de gestão de excedente humano, desemprego, crise habitacional, falência de políticas públicas e marginalização racializada. O Estado penal é um operador de contenção, um intensificador da expropriação e da negação de direitos.
Resumo: o encarceramento em massa é a forma encontrada pelo neoliberalismo para administrar os estragos provocados por ele mesmo, como a estrutura de hierarquias raciais. O racismo, para Gilmore, não é apenas uma ideologia ou um discurso de ódio, mas um princípio de organização social, que se manifesta de forma concreta, regulando o direito à vida, à mobilidade, à terra e ao tempo. E é nesse ponto que a crítica de Gilmore ao capitalismo racial revela o funcionamento interdependente de classe, raça, gênero e espaço, amalgamados pela violência.
Keynesianismo militar
A geógrafa desenvolve o conceito de “keynesianismo militar” para demonstrar como investimentos estatais, antes voltados para políticas de bem-estar social, foram deslocados para a segurança pública e o complexo industrial–prisional. A economia da guerra se transformou em política pública na cidade, e tem avançado cada vez mais sobre o campo. Em vez de escolas, prisões; em vez de trabalho, vigilantismo; em vez de moradia digna, expropriações; em vez de saúde, a farra de planos de saúde e a precarizaçao do sus.
Essa transformação não se deu por omissão, mas por projeto. Nesse sentido, não cabe mais a quem busca mudanças estruturais falar em “ausência do Estado”. O Estado se presentifica no vigilantismo, no aprisionamento e na letalidade. A repressão é moldada como política de desenvolvimento, especialmente em áreas periféricas e rurais, reciclando infraestruturas abandonadas e corpos considerados descartáveis. Cabe aqui o diálogo com movimentos sociais negros, quilombolas e indígenas, que denunciam os efeitos do desenvolvimento neoliberal e progressista. Há produção crítica racial profícua sobre o paradigma desenvolvimentista, expondo como ele impõe uma ideia única de progresso que exige, para que existamos, a destruição de outros modos de vida.
Para Gilmore, abolir prisões não é apagar as fronteiras entre dentro e fora, mas entre países, saberes e lutas
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O pensador quilombola Nêgo Bispo alerta que não se trata de desejar inclusão no atual projeto de mundo, mas de propor outro horizonte. Em vez de “desenvolvimento”, o “envolvimento”; em vez da submissão da natureza e de grupos ao progresso linear, a convocação de vínculos. As comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, localizadas em regiões cobiçadas por megaprojetos, monoculturas e mineração, enfrentam, além do risco de remoção e extermínio físico, o apagamento e deslocamento epistêmico e espiritual. A luta por território é também contra a prisão, que não se traduz só em muros e grades, mas em ideias que definem quem tem direito de existir.
A proposta abolicionista de Gilmore exige imaginação e trabalho ao propor a construção de alternativas que substituam a prisão e transformem as condições que a tornaram possível. Isso significa pensar em direitos e formas coletivas de cuidado sem depender da violência como arma de poder.
Para a autora, o abolicionismo é um trabalho oposicionista e não só uma posição ideológica. É construído no cotidiano, não como utopia, mas como algo que já acontece em resistências que são invisibilizadas. É o caso do trabalho de denúncia das mães de vítimas da violência do Estado, coletivos de bairro e ocupações urbanas, circuitos de cultura periférica, projetos de cozinhas comunitárias. Nesses exemplos, a geografia da abolição é ação.
Extermínio
Em países como Colômbia, El Salvador e Brasil, vemos o crescimento de políticas autoritárias e a expansão de modelos penais importados dos Estados Unidos. No caso de El Salvador, o regime de exceção de Nayib Bukele transforma o encarceramento em espetáculo, com apoio popular. Por aqui, a militarização da segurança, o avanço do crime organizado e o crescimento das facções se entrelaçam a uma lógica estatal de controle e extermínio, especialmente nas periferias urbanas e territórios indígenas.
A obra de Gilmore ajuda a nomear experiências já em prática e a desmontar a narrativa da impossibilidade do abolicionismo penal. Sua proposta é uma chave importante para pensar alianças transnacionais, especialmente entre os povos do Sul Global. Abolir prisões, para ela, não é apagar as fronteiras entre dentro e fora, mas entre países, saberes e lutas. Ruth Gilmore nos lembra que abolicionismo penal não é o fim de alguma coisa, mas o início de tudo que ainda podemos construir em rebeldia e esperança.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.
Porque você leu A FEIRA DO LIVRO 2025 | Perspectiva amefricana
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