Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Memória como campo de batalha

Livro sobre fuga de 38 prisioneiras no Uruguai faz refletir sobre como a história apaga as mulheres da linha de frente da resistência política

01dez2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dez

Eram dez e meia da noite do dia 30 de julho de 1971 quando “o piso se arqueou numa corcunda, partiu-se ao meio e se desfez em escombros” e iniciou-se o que pode ser considerada a maior fuga de prisioneiras da história. Sob um regime que tentava sufocar sonhos e insurgências, mas que ainda se maquiava de democrático, 38 mulheres escaparam da prisão de Cabildo, no Uruguai. Em sua maioria integrantes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, mas também de outros grupos políticos, construíram um plano de fuga ousado pelo esgoto — que foi executado com conhecimentos amplos que elas e sua organização tinham — e protagonizaram um feito que não se apaga, mesmo que a história e o machismo tenham tentado relegá-las ao esquecimento.

María Elia (esq.) e Lucía Topolansky (dir.), em carro de polícia, celebram a anistia, em 1985 (Agencia fotográfica Camaratres/Divulgação)

Josefina Licitra, jornalista argentina e autora de 38 estrelas: a maior fuga de um presídio de mulheres da história, lançado pela Relicário, nos conduz por uma história reveladora da luta por liberdade e por um mundo justo e com igualdade. Sua narrativa é eletrizante, a tensão é desenvolvida em crescente e alia linguagem jornalística e literária. 

Ler sobre essas 38 estrelas é adentrar uma constelação de histórias que desafiam a mera contagem de números ou a frieza dos relatos fotográficos. E é aqui que o livro que resgata suas vidas, seus atos e suas dores encontra sua força. Não se limitando a fatos e datas, Licitra transformou essas mulheres em personagens quase de caráter epopeico pela pulsação que combina vida e poesia.

Quando descreve os olhares antes da fuga, a autora nos traz o humano diante da tentativa de desumanização

A história da resistência feminina em contextos autoritários não se resume a uma nota de rodapé ou a um relato objetivo nas mãos de Licitra, pois são trajetórias que, mais do que contadas, precisam ser sentidas. As palavras da autora iluminam uma avenida histórica relegada à escuridão — seria demais estabelecer a relação entre fugir por um esgoto e ter sua história de resistência confinada a escombros? Ao avançar pelas páginas, vislumbramos retratos de dor, de coragem, de luta, de amor ao próximo e de uma esperança determinada.

Cada mulher é tratada como uma história única, ainda que interligada a todas as outras, como parte de um quebra-cabeça coletivo. A narrativa é ritmada e nos faz recriar cenários. Quando descreve os olhares antes da fuga, os sentimentos, os medos, os questionamentos e as contradições que essas mulheres carregaram, a escritora nos traz ao mais profundo humano diante da tentativa estatal de desumanização. A resistência se torna memória e força.

A prisão de Cabildo, no Uruguai (Divulgação)

Uma das 38 estrelas é Lucía Topolansky, um nome marcante da história política e social do Uruguai ainda hoje. Nessa história, Pepe Mujica, seu companheiro e ex-presidente do país, é coadjuvante e o percurso de Topolansky, e de sua irmã gêmea, Maria Elia, que participaram da fuga histórica, ganham as dimensões devidas. Uma militante ousada, com ampla convicção revolucionária e popular. Assim como muitos companheiros tupamaros, ela seguiu na luta política democrática. Sua atuação como deputada, senadora e vice-presidente, sua forte relação com as lutas de base popular são exemplos de que as convicções por um mundo de justiça social seguem firmes e como testemunho de que a liberdade conquistada não foi apenas uma fuga física, mas um compromisso ético com o futuro.

Tabus da época

O livro é convite a refletir sobre como a história apaga as mulheres da linha de frente da resistência política. Esse apagamento só é possível pela insistente dinâmica patriarcal mesmo em organizações de esquerda e populares. Esse, talvez, seja um ponto crítico da narrativa que, se por um lado se compromete num esforço contra esse apagamento, por outro, em alguns momentos, é condescendente sobre as motivações para isso, explicando-as como “tabus da época”. 

Na página seguinte a essa explicação há o relato de mulheres anarquistas na prisão e de como essa vertente do movimento de resistência, ainda naquele período, já revolucionava, também, o campo das relações sociais e da sexualidade, defendendo “o amor livre em termos amplos” e a coparticipação de mulheres na organização da luta política. Essa inflexão é importante para trazer um ponto de tensão necessário na história, que não é linear, mas dialética.

(Divulgação)

As tensões sobre sexualidade sempre existiram, a decisão de abraçá-las está em nossas mãos. É importante, portanto, trazer a dimensão do conforto na reprodução de hierarquias sexuais e de gênero para homens que, ainda que companheiros e revolucionários, não queriam abrir mão do poder de comandar suas organizações. Mais do que a justificativa da época, há uma escolha de até onde transformar a sociedade, ainda que não seja consciente.

Ainda que companheiros revolucionários, os homens não queriam abrir mão do poder e do comando

No Brasil, figuras como Maria Amélia Teles, Iara Iavelberg, Dilma Rousseff, Eleonora Menicucci, Helenira Resende e tantas outras enfrentaram prisões, torturas, abusos sexuais e desaparecimentos, mas suas histórias ainda são menos conhecidas do que as de seus companheiros homens. Assim como as tupamaras, elas resistiram ao duplo apagamento: o da ditadura e o da sociedade patriarcal — e nos lembram que a memória é um campo de batalha. Ainda que vivamos sob um regime democrático liberal, há constantes e crescentes discursos autoritários e conservadores que se utilizam das próprias ferramentas democráticas para corroê-las. Sendo assim, lembrar é resistir. Lembrar é garantir que não se repita.

A fuga dessas mulheres não é uma peça do passado, mas a iluminação ante a desinformação, a violência política de gênero e a manipulação histórica. Há nessas páginas a promoção de um ato de reencontro, um ato de memória que nos convida a jamais deixar que essas estrelas se apaguem.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Memória como campo de batalha”

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