
Deslembramentos,
por sorte hoje não tive azar
há guardados que aparecem quase do nada, na encruzilhada de uma movimentação quotidiana
27maio2025 | Edição #94às vezes lembro de sensações que me guardou uma certa criança (em mim). alguns desses guardados aparecem em sonho, como miuçalhos de um filme.
desperto com memórias curtas e específicas do sonho sonhado. ou seja, lembro no corpo e na imaginação algo que, sendo recordação, é também sonho. esses guardados, que sobram e se esparsam pela recém manhã, têm prazo curto de vida. por erro consecutivo meu: não anoto; não gravo; penso que me vou lembrar de tudo durante anos, mas quinze minutos depois, com o café na mão, já tudo virou nuvem branca num céu azul limpíssimo. respiro fundo, sinto–me triste. (daqui a semanas hei de estrear o mesmo erro.)
mas há guardados que aparecem quase do nada. na encruzilhada de uma movimentação quotidiana. entre a chave e o chinelo. entre a escova de dentes e o pano da cozinha. entre a poça de água e o reflexo do céu.
esses guardados vêm, nem sempre em quantidade, mas em generosa qualidade. têm nomes e lugares. dizem as horas e a cor das roupas. falam das falas faladas de então, com as palavras de então, e as pausas de então.
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um curto sorriso pode visitar-me: nem que eu me esforce, a sonoridade daqueles momentos não cabem mais na linguagem deste século. eu e as palavras e até o seu corpo fonético, todos nós, juntos, envelhecemos já. não é que eu não pudesse reproduzir o nosso modo falado. mas eu não sou aparelho de gravação e reprodução de sons; eu quero ser da recriação da imaginação do som e da imagem revoltas em sugestão de literatura e emoção de sentir os sentidos: a atemporalidade de uma palavra que sabe ajustar-se à estória que lhe criou; e que não ficassem, nem a palavra nem a sonoridade, presas à cronologia de certo mês ou ano. uma força, não apenas da palavra, mas do episódio. creio que a performance vive de uma textura, de um tempus musicae e, ainda, de contextos: ou social ou afectivo ou ambos os dois.
*
por vezes, há guardados que aparecem assim. sem as marcas de um ou do seu tempo: estávamos na rua do meio. não seriam mais do que dezasseis horas nem menos de catorze e trinta.
mesmo à sombra aconteciam calores. e éramos dois apenas numa conversa de depois de almoço. admira-me estar ali à essa hora. sem tarefas da escola. sem aula de educação física. sem ninguém que requisitasse a minha obediência.
o meu interlocutor era um “daqueles”: aquele tipo de criança ou luandense mesmo que adulto. daqueles que são ou foram e ainda serão os melhores em tudo (mesmo que a estória te pareça difícil de acreditar, terás de acreditar: isso é um problema (apenas) teu). o teu interlocutor, criança e luandense ou adulto e luandense, é e foi “o melhor” em várias coisas. muitas mesmo. coisas nas quais tu nem sonhas ser sequer medíocre. e ele narrou vários desses episódios de seguida.
quero ser da recriação da imaginação do som e da imagem revoltas em sugestão de literatura e emoção
eu não estava apto para competir verbalmente, luandensemente, com nenhuma das façanhas dele. eram bem contadas, bem pré-estruturadas. eu, nesse então, nem sequer sabia estruturar nada, quanto mais uma boa estória. o sol me incomodava além da voz dele. mesmo à sombra.
o meu interlocutor fez uma pausa. e aquilo saiu-me assim: do nada, ou de algum lugar que hoje não tenho o dom de explicar ou compreender. saiu, nem posso dizer da minha garganta, mas da minha voz:
— eu já escapei morrer…
aqui já seria muito perto da hora dezasseis. o lábio do meu interlocutor tremeu. (muitíssimas) gotas de suor apareceram-lhe na testa. ele desfechou a boca muito ligeiramente, mas não teve voz de falar. molhou os lábios, olhou-me com dificuldade. eu pus-me ao sol. eu estava em brasa: era a minha toda-luz contra o todo-silêncio dele.
ele ainda tentou:
— mas morrer “mesmo…”?
eu fui caminhando devagar, de costas viradas-lhe. já nem mais olhei. caminhei em direcção à minha casa. deixei, com ele, os meus dois ouvidos.
— yá. eu já escapei morrer duas vezes — falei sem quase dizer.
*
na minha rua me chamavam de azarado. em muitas coisas, eu era mesmo um certeiro azarado. nos dias quase todos. em outras coisas, eu era fraco, como se dizia antigamente. mas naquela tarde, por sorte, consegui não ter azar. foi mesmo assim que aconteceu — e, claro!, foi em luanda.
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025. Com o título “por sorte hoje não tive azar”
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