
Deslembramentos,
começar um último livro
talvez eu tenha ido tão longe nesse momento, tão perto de um dentro, que às vezes custa dizer que era imaginado de um lado só, do meu
25fev2025 | Edição #91 mar— vim despedir-me…
(eu) disse, depois de entrar, vagaroso e arrastando-me, escada acima
(ele) fez sinal com o braço, um sinal duplo, em diagonal desenhada tipo espada japonesa a cortar seco, fez sinal para eu sentar
e que não tinha entendido nada porque algum ruído estava demasiado alto para o seu pouco ouvido
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— só há um bocado de cidade dentro deste ruído todo…
franziu olhar e nariz, logo depois corrigiu para um sinal de copo na boca, a perguntar no gesto se eu quereria beber algo
eu ainda a endireitar-me na cadeira, a ver se conseguia dizer o mesmo outra vez
— vim despedir-me de ti
— ah, vais viajar?
— isso também. mas vim me despedir de ti, porque esta é a última vez que nos vemos
fiquei a olhar para ele
a ver se via de perto algum por-dentro dele, talvez o olhar, talvez o gesto mínimo de queixo a querer não dizer o já dito, rodopio de pensamento que o assalta e não denuncia (não facilmente), se ouviu bem o que eu disse e já está, ou se deixa passar alguns instantes e embala na performance do tempo da espera e do tempo de falar, como se houvesse na demora um peso por medida de densidade e drama
estive dentro de algum lugar que a ilusão das pequenas cumplicidades na escrita pode alimentar
— ah!, bom…
o som do áah bôn sai bem desenhado por ele, anasalado em quina, dá lugar ao resto que sopra mais baixo
— pensei que vinhas me dar a extrema-unção… mesmo com pouca noção…
talvez ele esperasse de mim o riso, o desmoronar do olhar, a conivência cortês celebrada entre griot e audiência
talvez
talvez eu tenha ido tão longe nesse momento, tão perto de um dentro, que às vezes custa dizer que era imaginado de um lado só, do meu,
e tudo bem,
há coisas que às suas margens prestamos a direcção equivocada, e eu estive dentro de algum lugar, como que um precipício de vidro ou labirinto ou sério declive
a ver as coisas que o delírio de um leitor quis ver, que os olhos de uma criança quiseram acreditar, que o lugar de um sobrinho pôde ajustar, que a ilusão das pequenas cumplicidades na escrita pode alimentar
talvez eu tenha tido, e não apenas nesta estória, uma ilusória conexão, ou provisória ou ténue, ou simplesmente com o tempo de vida que as coisas têm e podem fazer durar.
(…)
— vim despedir-me de ti, com toda a lentidão que nos for possível
— então o melhor é escrevermos uma outra estória.
— sim, já começámos, no início. agora podemos começar a terminar o nosso último livro.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “começar um último livro”
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