Figura rupestre, Serra da Capivara (Fotografia de Jordi Burch)

Deslembramentos,

nem quase todos morreram

as pessoas de idade, uso pensar, têm uma tranquilidade inerente, conseguida nas ruas da vida — ou entre os vazios do sal que sobra das lágrimas

01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 jan

Assim como Neruda nos pediu: Não me perguntem por ninguém, já morreram todos, eu também pediria que não me perguntassem pelos amigos que estiveram ao meu lado enquanto escrevi estas memórias. Os amigos que me fizeram companhia, provocando riso e às vezes pranto, permitindo-me voltar a reviver o passado, morreram quase todos. […] A chaga ainda está aberta. 
Zélia Gattai, A casa do Rio Vermelho

Figura rupestre, Serra da Capivara (Fotografia de Jordi Burch)

(…)

no dia que soube da notícia da partida de jorge amado (em 2001), a primeira coisa que me veio à cabeça, confesso, foi a imagem doce que eu tinha de zélia gattai. os seus olhos contorcidos de ternura, o sorriso franco — porto de companheirismo e amizade.

não consegui pensar em jorge, desconheço por completo a textura do seu sofrimento último. sabia que estava doente; sabia que, eventualmente, estaria desconfortável nesse viver que as doenças impedem de ser humanamente gostoso.

lembrei-me de imediato de zélia. do que seria para ela a partida do marido, o companheiro, o ser que a abraçou durante tantos anos.

eu dela havia lido somente A casa do Rio Vermelho, o que era material bastante para ter ficado com a falsa sensação de quase ter conhecido o casal na sua intimidade, o que foi certamente suficiente para ser tocado pela maneira ternurenta que zélia tem de sugar a vida e de a partilhar exaustivamente com o companheiro. intrigava-me não poder ouvi-la, não lhe poder telefonar, não perceber se estaria, ela, descansada ou chorosa. e, como eu, quantos teriam lido esse livro ou outro e ficado com a sensação de que se era bem vindo naquela ampla casa?

zélia gattai, pelo menos nesse livro que refiro, expõe delicadamente
o que foi para o casal o conceito de felicidade. “acontecia” qualquer coisa gigantesca naquela vivenda e nos corações daquelas pessoas. a obra refere encontros atrás de encontros, amizades calorosas, não só presidentes ou escritores, mas também do simpático jardineiro que gostava de dizer “dona zélia é tão interessante…”.

a partida de jorge amado devolveu-me, num instante bruto, a imagem da face de zélia. as pessoas de idade, uso pensar, têm uma tranquilidade inerente, conseguida nas ruas da vida — ou entre os vazios do sal que sobra das lágrimas. mas lá no seu interior, quem sabe tão recatadamente, zélia devia estar a despedir-se aos poucos desse que foi o seu companheiro de uma vida.

é difícil não pensar em zélia quando jorge parte. “jorge tem horror a cemitérios, evita sempre ir a enterros”, diz zélia, na página 57 do mesmo livro.

há algo que me protege em momentos difíceis. supero o desespero, não me entrego, conservo o sangue-frio, não perco a cabeça, colaboro. minha mãe diria ser a proteção da estrela que me ajuda, mas a quem chamei naquela noite, ao ver jorge torcendo-se em dores, sofrendo, escapando de meus braços, vendo-me impotente diante da morte, foi dele que lembrei, de deus.

refere assim sobre um dos ataques que jorge tivera. eu só conheço zélia do que li nesse seu livro aberto. a impressão que tenho dela é essa mesmo, a da ternura transbordante, e o odor se impregnando de jorge amado nela; nos seus olhos também.

quando um dia, há muito tempo, zélia perguntou a pablo neruda se já tinha terminado o seu livro de memórias, o poeta respondeu-lhe: 

aprenda mais essa, comadre, um livro de memórias jamais tem fim. a vida continua. […] um livro de memórias nosso, de jorge e meu, não pode ter fim. nem nosso, nem de ninguém.

perto da casa do rio vermelho, um dia destes, zélia (seus-modos-doces) & jorge terão de confessar (o) que viveram.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “nem quase todos morreram”

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