Ondjaki
Deslembramentos
sempre nos lembraremos dos nossos piores dias
que dolorosa constatação a de ver e nos vermos, surdos e mudos, perante o descalabro humano que um grupo de pessoas decidiu impôr à Palestina
26nov2024 | Edição #88 dezcaro V.C.,
num domingo à moda antiga, sentado à escrivaninha de um hotel, venho deixar-lhe umas linhas de preocupação e saudade;
“minim temporibus vivamus. et perpetua…”, diria eu, em latim, mas é só para impressionar o meu irmão Jordi B. que pensa que eu sei algo de latim; “vivemos tempos estranhos. e duradouros…” (foi a frase que pedi ao tradutor moderno).
quisera eu não ter sentido o ímpeto de lhe escrever esta carta. porque me é uma carta difícil, silenciosa e estranha, pelo que me gera ao tentar escrevê-la; e por não ser capaz de produzir um texto que reflicta aquilo que me vai por dentro, nem na sua intensidade nem nas pequenas oscilações que o configuram. mas há momentos na vida em que é preciso aceitar o pequeno desafio de simplesmente dizer.
vai o mundo em tal desarrumação…, que outro caminho não tenho que não o de comentar: que tristeza, que fundo desapontamento, que dolorosa constatação a de ver e nos vermos, surdos e mudos, perante o descalabro humano que um grupo de pessoas decidiu impôr à Palestina. não é de hoje, sabemo-lo. nem apenas de 1947. é de antes e de variadas responsabilidades. mas há um hoje que há-de envergonhar-nos a todos. um hoje onde, creio, nos vemos até na impossibilidade (uns) e na desvontade (outros) de saber como ajudar ou agir.
vai o mundo em tal dor. e essa dor leva o nome da Palestina em quase toda a sua pele.
vai o mundo em tal cegueira que nem as balas nas cabeças de crianças alvejadas nos faz gritar
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(abro parênteses: vi há dias uma sessão contínua de filmes feitos já após o início da invasão de Gaza. filmes feitos ali, no coração do inferno. ali, no coração dos olhos das crianças. e ali: onde entre um dia e outro, as pessoas buscam momentos contínuos de sobrevivência. e é difícil não chorar e não desesperar. mas é muito mais difícil não sorrir e celebrar: os filmes abordam, claro, a lágrima e a dor, mas revelam (até com doçura) aquilo que de mais digno tantas vezes assiste às gentes da Palestina: a dignidade de sobreviver, a persistência de humanizar o lugar que ocupam e que lhes permitem ocupar, o gesto de ir fazendo o seu mundo persistir para que as gerações vindouras possam um dia existir simplesmente, e simplesmente em paz.)
vai o mundo em tal descaso…, que não poucas vezes encontro nos noticiários uma gente, que se diz “internacional”, e que (finalmente) acusa o grupo-de-pessoas-que-impõe-descalabro-humano de não respeitar autoridades internacionais. como se “vidas internacionais” valessem mais que vidas palestinas (!). e vai o mundo em tal cegueira que nem as balas nas cabeças de crianças intencionalmente alvejadas nos faz gritar; ou os faz parar.
andaremos, todes, embrumados na revisão (reformulação?) dos paradigmas que se estão a alterar? perdidos nas modernas armadilhas (“ou és A ou és B”) teremos perdido o chão de saber que decisão pisar? quando nos dizem para “não ficar em cima do muro”, teremos nós a lucidez de decifrar que muro é esse e quem o aprontou? será hora de admitirmos que perdemos, algures, a bússola da empatia que deve assistir aos seres humanos?
e quão humanos seres ainda somos? e “quantum humanitas adhuc habemus?”
(…)
é bem verdade que as guerras dos outros nos lembram as nossas guerras. estranhas energias me invadiram ontem, nesta cidade de Santo Domingo, quando referi pequenas lembranças de uma curta guerra (de poucos dias), numa Luanda de 1992. já me tinha emocionado ao falar dos professores cubanos. depois de repente vi-me num relato de como a guerra fazia “tanto barulho”. e se tinha sido assustadora para mim, parece-me que o fora mais para a minha irmã mais nova. apenas alguns dias de guerra. não com a duração e a intensidade da Palestina. portanto: é preciso (re)contextualizar as nossas guerras quando, numa conjuntura maior e bem mais desumanizada, a guerra do outro é mais sofrida que a nossa. não por comparação; não foi isso que quis dizer. mas apenas porque a nossa já passou; e a deles continua ainda, dolorosamente viva, todos os dias.
caro V.C., despeço-me por agora. se calhar vim apenas dizer coisas poucas: como esses momentos (dos filmes palestinos) em que ainda pude ver crianças a brincar. tinham os olhos cansados e duros; vestiam já nos seus corpos estreantes uma dor antiga que há-de perdurar; mas traziam, também no olhar, uma marca de luz e de sal. talvez o sal seja o do mar. talvez a marca de brilho seja a do futuro.
(…)
adeus por hoje.
PS: Oh crianças malcriadas de Gaza./ Vocês que me perturbavam o tempo todo/ com seus gritos debaixo da minha janela./ Vocês que enchiam de caos e correria/ todas as minhas/ manhãs./ Vocês que quebraram meu vaso/ e roubaram a flor solitária em minha varanda./ Voltem,/ e gritem o quanto quiserem/ e quebrem todos os vasos./ Roubem todas as flores./ Voltem./ Apenas voltem.
(Khaled Juma)
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024.
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