TransforMaçã, fotografia de Jordi Burch

Deslembramentos,

ultimamente, nem já milagres

haverá ainda gente com a capacidade simples de querer estar com outras gentes? (e nesse estar: um descobrir, um escutar? oxalá!)

25mar2025 | Edição #92

1.

até mesmo a palavra maçã

permite abrir uma conversa, real ou imaginária, sobre uma coisa que pode gerar outra coisa. por exemplo: uma semente pode vir a ser fruto e flor. ou: como uma nuvem hoje pode, amanhã, esvoaçar-se em ar ou chuva molhada.

1.5 (uma vez fui apanhado por uma chuva molhada que voava de norte para sul. mas, bem vistas as coisas: era uma andorinha.)

2.

o corpo do futuro de cada lugar. o futuro a falar da capacidade das gentes e da sensibilidade do entendimento. a outros, seria útil poder usufruir.

2.5 (houvesse um tempo para aqueles que andam sob a chuva do fogo, isto é, as guerras-que-duram, e pudessem eles usufruir desse tempo para simplesmente viver. serem felizes. espreitarem, como coisa banal, as brincadeiras felizes dos mais-novos.)

3.

onde há desencanto houve ilusão e crença. e onde há entrega, haverá certa paz. cooperar, participar de transformações. escuta e conversamento. assim como aproximando uma maçã (que já foi gesto e já foi semente; e já foi rega e já foi broto) do acto de transformar, pode que humanamente, no lugar de simples transformação, nasça a palavra transformaçã.

desabrir a chuva e visitar a infância, desabrir o barro e ler Manoel, desabrir a ponta e a ponte

3.5 (ilusão e crença de mãos dadas ou de mãos afastadas. mas bem vistas as coisas: era uma questão de reconhecermos que todos têm merecimento de certa serenidade.)

4.

já diria o mais velho muito velho que inventava palavras: “triste e antiga sina a nossa: não há milagres, ultimamente!”

mas haverá ainda gente com a capacidade simples de querer estar com outras gentes?

4.5 (e nesse estar: um descobrir, um escutar? (longa pausa). oxalá!)

5.

o termo amombe’uta (língua mbya guarani) significa “vou contar”.

e quem conta, lembrando para trás ou para mundos paralelos, conversa consigo e com o mundo. desabrindo aos poucos as camadas do silêncio.

5.5 (como assim desabrir?

6.

desabrir a disponibilidade. desabrir o convexo do humor. desabrir lentamente a palma da mão para que seja simples e vista. desabrir uma flor ao perto e ao pouco. desabrir a chuva e visitar a infância. desabrir o barro e ler Manoel. desabrir a ponta e a ponte.

6.5 (desabrir, celebrando, sem ter que responder a quem colocar “como assim desabrir?”)

7.

preparar uma conversa é expôr uma coisa — que pode gerar outra coisa.

por exemplo: uma maçã.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025.

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