
Deslembramentos,
infindáveis estórias
é bonito esse lugar onde, sem querer, sem saber como, às vezes visitámos por surpresa e encantamento, uma pequena memória
30jan2025 | Edição #90 fevem umbundu diz-se “ame di ku sapuila alusapo” (vou contar estórias).
(mas) eu não falo umbundu; quem me revela estes segredos, mediante requisição afectiva, é a tia L. uma vez ela levou-me ao Huambo, eu era pequenino. pequenino mesmo. voltei (para Luanda) no mesmo voo. dizem que eu chorava, querendo regressar a casa. a razão era só uma: “eu quero o meu Huambo amarelo”. nunca ninguém entendeu.
as crianças têm as suas razões, as suas birras, os seus secretos humores. e os adultos domesticam a criança dentro deles e até mesmo os humores das crianças dentro deles. seria outro o mundo se o mundo dos adultos pudesse ser outro.
uma das crianças que eu fui recebeu um presente do avô Anibal. um carro que tinha sirenes, trabalhava a pilhas, quando encontrava uma parede ia de encontro a ela, dava uma cambalhota para trás e seguia o seu caminho. funcionou bem de manhã cedo, quando o avô me fez a oferta. depois fui à escola. contei com detalhe os detalhes da minha viatura autónoma. passei a manhã ansioso para voltar ao meu carro superesculú (termo usado em Luanda, nos anos 80; o equivalente a “muito especial” ou “exclusivo”). cheguei a casa e fui logo brincar com o carro. mas “não pegava”, isto é, não ligava. nenhum som. nenhuma luz. ainda mudei as pilhas. o carro vivia agora num silêncio mais que absoluto e absurdo.
os adultos domesticam a criança dentro deles e até mesmo os humores das crianças dentro deles
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fui à procura do cozinheiro, o camarada António: “empresta-me só o martelo da carne”. dei ao carro mais uma chance de funcionar. respirei fundo e martelei com força. várias vezes. agora aquele amachucado branco, azul, de vidros vermelhos partidos, parecia mais um desbrinquedo. o camarada António olhava incrédulo para o resultado. atrás dele, surgiu o meu avô. conhecido por não gostar de gastar dinheiro, os olhos do avô Anibal eram um mar de desapontamento e incompreensão. mas eu também me lembro de estar triste. peguei no carro com calma, qual flor frágil entre as minhas mãos; aproximei-me do meu avô: “parece que aconteceu um acidente terrível…”, foi o que pude dizer.
as crianças gritam para fora como gritam para dentro. pudesse eu escrever mais sobre os gritos que a minha criança gritou dentro do meu peito. pudesse eu gritá-los para fora em vez de ter sido para dentro. lágrimas e gritos: hoje quando falo aos “mais novos”, uso falar da possibilidade de gritar para fora. de procurar alguém que os acompanhe num bramido ou dor.
onde começam esses medos? onde ganha corpo a parede que nos cerca e que construímos ao redor da nossa criança? onde ficam escondidas as chaves que escondemos quando éramos pequeninos e o mundo parecia ser tão grande e assustador?
é bonito esse lugar onde, sem querer, sem saber como, às vezes visitámos por surpresa e encantamento, uma pequena memória. um cheiro absolutamente nítido que, sim, se transforma numa viagem pelo tempo. ou pela pele. ou pela dor. ou pelo riso. ou pela ternura. ou pela música. ou pelas cores. ou pelo olhar de alguém. ou pela areia molhada. ou pela escola. ou um lugar que não se visita há séculos e de repente, inefável, implacável, se abre em nós e nos toca como um segredo impronunciável. pode ser que alguém, perto, pergunte “o que foi?” e tenhamos que dizer distraidamente “nada, não foi nada”. mas como ter o atrevimento de chamar nada a esse lugar incomensurável, redondo, redemoinhado em pequenos detalhes da nossa mais ínfima intimidade?
uma vez eu estava a escrever parte de uma estória, o fim de algo que precisava de um fechamento que lembrasse um nó. um nó seguro de pesca. um nó eterno, de uma costureira habilidosa. um nó inabalável como uma mentira natural. um rapaz que perguntava à avó algo sobre os tempos mais antigos. e a avó respondia, na minha estória: “antigamente não é um tempo; é um lugar”. muitos anos depois, na varanda onde tantas vezes nos sentámos e conversámos, eu sem melhor coisa para dizer comentei: “sabes, avó, gosto tanto da palavra antigamente”, e ela apenas me pegou na mão, como fazia bem devagar: “antigamente é um lugar que fica dentro de nós”.
mas muitos mais-velhos escritores já me haviam prevenido: no continente africano, a vida vem antes e melhor do que a ficção. um dia recebi (da Paula Tavares) uma carta (linda) que dizia assim: “há adultos que se esquecem de crescer e andam sempre a misturar sonhos com sal grosso para ver se explodem. As vozes são o que nos resta para ajudar a suportar as cicatrizes que suportamos por dentro”.
(…)
eu gosto de ver a expressão nos rostos das pessoas quando digo que eu tenho, tive, dezessete avós. (“mas essa parte das dezessete avós é mesmo verdade?”) como se eu pudesse, alguma vez!, explicar a vida. ou a literatura. ou a vontade de contar.
seria outro o mundo, se o mundo dos adultos pudesse ser outro. sem que (nos) ensinassem tanto isso de domesticar a criança dentro de cada pessoa.
as crianças: elas têm as suas razões, as suas cores, os seus secretos rumores. as suas infindáveis avós.
Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “infindáveis estórias”
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