Ondjaki
Deslembramentos
carta a uma pessoa que me faz falta
o verbo “partir” oferece a poética, simples e calorosa opção de haver algum tipo de regresso, algum fortuito reencontro
24out2023 | Edição #75caro VC
há dias fui a um lugar e era longe de ir, mas fui (a convite) para ouvir pessoas falar de luto e de morte, tanto de uma ou outra coisa, ou as duas misturadas, um grupo onde o objectivo é criar condições para que possa (quem quer, e precisa…) “falar disso”, e que ninguém julgue ou faça comentários.
um “espaço aberto” a essa entidade tão fechada como (costuma ser o) falar “da morte”, de tudo o que a ela chegue perto, seja a possibilidade de alguém morrer, de nós mesmos virmos a atravessar esse rio, ou o desejo ou a necessidade de falar (e repetir quantas vezes ainda se necessitar) sobre a morte de alguém que nos morreu.
chorar é por vezes dar chuva aos olhos, e lembrar às emoções que há coisas caladas
eu estava lá, portanto, para ouvir e apreender certas nuances da vida real, específica, daquele grupo, quando me dei conta de que também eu tinha coisas a expôr sobre um dos alguéns que me tinha morrido há algum tempo, mas de cuja morte o eco ainda se debatia por dentro e perto de mim.
eu estava lá, e estive, para anotar sobre aquilo que ia escutando, apreendendo e ressignificando, quando uma intensa vontade-de-lágrimas me descompôs o peito e a escrita, chorar é por vezes dar chuva aos olhos, e lembrar às emoções que há coisas caladas que ainda guardam sentimentos e texturas por serem ditas.
assim foi que, devagar, algumas destas coisas pude e consegui dizer, e ao dizer dei nomes ao que sentia e de quem sentia tanta falta, e eras tu, o teu nome, a tua voz de tantos anos, o teu sorriso desavisado e desoprimido por uma permitida distração, logo com anotação verbal, tua, enquerendo voltar ao rumo da sessão, “agora a sério, não acha que (…)?”.
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e hoje dei comigo, aqui, aos poucos e devagar, a tentar escrever, sabemo-lo eu e tu, a primeira carta que te escrevo desde que houve a tua morte; na minha família, antigamente, em vez de se dizer que a pessoa tinha morrido alguém dizia que alguém tinha partido, esse verbo, nunca o disse a ninguém, sempre me trouxe uma ligeira paz às dores da saudade que sinto pelos que me morreram.
“partir” ameniza-me o olhar, transporta-me para qualquer porto surreal ou de verdade, escutar dizer que “a pessoa partiu…” lembra-me o Mussulo, lembra-me Gorée, também me lembra Napoli ou o Lubango, também me lembra Zanzibar e o Namibe, tudo (todos eles) lugares lindos onde a magia das amizades sempre foi maior que a morte dos que foram morrendo, e mais.
“partir” oferece a poética, simples e calorosa opção de haver algum tipo de regresso, algum fortuito reencontro, algum abraço pendurado algures entre a recôndita diagonal da tua voz, o teu silêncio enternecedor, as tuas mãos ágeis, o teu jeito esforçado de disfarçar coisas humanas que às vezes, mesmo após anos de treino, se te escapavam a meio de algum gesto.
por que eras bom kimbandeiro, mas sobretudo eras bom no que escolheste fazer com honestidade: ser um grande kimbandeiro.
…
caro VC, despeço-me com ternura. foi bom chegar perto do luto de outras pessoas e poder dar-me um pouco de espaço ao luto que ainda faço de ti.
que as rãs te acompanhem e também a chuva boa.
te abraço,
ondjaki.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.