Ondjaki
Deslembramentos
Mas lembro-me do cabrito
esse era o meu desejo: que houvesse um portal onde, sempre que quiséssemos, fosse possível ir a uma cidade e encontrar lá pessoas que já não estão entre nós
19set2023 | Edição #74certa vez fui desde Caxambú até Salvador. foi simples: começou com um convite do Bito, na altura adido cultural (de Angola no Brasil) e responsável pela Casa de Angola na Bahia. e quem era o Bito? que pontes antigas encerrava ele no seu sorriso discreto, na sua inteligência veloz, no seu jeito aberto de rir e inundar o mundo de ternura?
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o Bito era irmão do Fernando, que era irmão do Jacques, que tinham como mãe a Avó Lú; e tinham crescido em Calulo. para quem não conhece (que heresia!, diriam os de Calulo), trata-se de uma terra que fica na província do Kwanza Sul, em Angola. os daquele lugar têm por fraqueza considerar que eles são ou foram os melhores em quase tudo. faz lembrar as pessoas que são do Golungo Alto e também sofrem da mesma patologia de modéstia involuntária. mas eu creio que posso compreender: os pequenos lugares, em qualquer parte do mundo, costumam dar origem a fenómenos, a pessoas, a estórias e a rumores de dimensão universal. é muito fácil olharmos a nossa pequena aldeia e julgarmos que ela é, de facto, a principal varanda do planeta Terra. não é só normal, é belo também.
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queria poder invocar e partilhar todas as estórias que vivi em Salvador. mas é nestes momentos (de escrita) que sorrio ao lembrar da habilidade de García Márquez quando pegou em toda a sua família, em toda a sua História, em todos os seus segredos, em todos os contornos familiares e soube fazer uma literatura que não melindrava ninguém. apenas os engrandecia. apenas os colocava num lugar literário que abandona as correntes do que é local (e secreto) para passar ao universal (e literariamente válido). eu gostaria, mas ainda não sei falar dos momentos (e dos ritmos) que vivi em Salvador, com o Bito, no muy distante ano histórico de 2000.
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os pequenos lugares costumam dar origem a pessoas e estórias de dimensão universal
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mas lembro-me do cabrito. até hoje não sei o nome do restaurante, nem a sua localização. mas lembro e sonho com o sabor e os aromas daquele cabrito que me fez perder o voo. desde que cheguei a Salvador que o Bito me avisava: temos que ir comer o cabrito. o animal repousava em vinhas de qualquer coisa por mais de 48 horas e depois de ir ao forno era servido para o deleite de quem o tivesse encomendado. diz que o cheiro se anunciava antes de as pessoas se sentarem. diz que quem fosse lavar as mãos cruzar-se-ia no caminho com um fumo invisível que servia de abridor de apetites e de sonhos. creio que teremos “varrido” ou duas ou três garrafas de vinho branco. e lembro que foi consciente a decisão, quando o Bito me perguntou: “abrimos a terceira garrafa?”, e o cabrito ia (ou nós íamos nele…) a pouco mais de metade, e eu concordei de boca cheia e sorriso largo. “isso implica perderes o voo”, avisou-me, lento, de guardanapo nas mãos, esperando a minha decisão. e ali ficámos.
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o Bito conheceu-me há muitos anos, nos dias em que eu tinha acabado de nascer. amigo dos meus pais, companheiro da minha mãe no “Partido”, companheiro dos meus pais (e de outros) na “equipa dos íntegros”. bom garfo, bom copo, grande dançarino, bom sorriso, excelente contador de estórias, dono de uma memória digna dos de Calulo. digo isto porque os de Calulo precisam de titânica memória para contar as estórias do lugar. e se é verdade que há lugares com estórias faustosas, usualmente aquilo que é contado depende (mais) é de quem conta. e como conta. e os de Calulo nisso de contar parecem pescadores: as estórias deles são melhores que as de outros lugares, segundo eles. até o nevoeiro.
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eu falo do Bito para falar desse lugar encruzilhado onde se perdem os corações, a dor, um género de aperto ou algo que nos faz sorrir com os olhos e tremer os lábios da boca: a saudade. às vezes tenho saudades de Caxambú e de Salvador, mas é também por via do Bito. esse era o meu desejo: que houvesse um portal onde, sempre que quiséssemos, fosse possível ir a uma cidade e encontrar lá pessoas que já não estão entre nós. os nossos “criadores” deviam ter pensado nisso: uma espécie de respiro humano, um empréstimo metafísico, uma janela provisória onde espreitássemos para ver e sobretudo abraçar os que já partiram. e vice-versa.
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há uma estória curiosa que, creio, foi-me contada pelo Bito. em incerta ocasião, um senhor do Golungo Alto gabava o belo nevoeiro da sua terra. insistia em descrições intensamente poéticas, indesvendáveis, extasiantes. “no Golungo Alto temos o melhor e mais belo nevoeiro no mundo”, dizia o do Golungo. o amigo, que era de Calulo, aceitou ir lá dormir para ver tal encantadura. a noite anterior foi regada com mais enaltecimentos. até que despertaram. e o do Golungo veio eufórico despertar o de Calulo. e o de Calulo, ensonado, foi-se deixando arrastar até à varanda da casa para apreciar a humedecida ocasião. e para surpresa de um, o outro começou a sorrir de modo que muito lembrava o da troça. e o do Golungo aparentou não gostar e prontificou-se para se ofender. até que o de Calulo, esfregando a barriga espreguiçando-se, disse devagar: “ó camarada, era isto que me queria mostrar? mas este nevoeiro que está aqui… é o de Calulo!”
Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.