
Deslembramentos,
às vezes os medos têm pessoas
às vezes as pessoas têm medo do silêncio. como têm medo do escuro como têm medo de perder a voz, a vez e o momento de dizer as coisas
23abr2025 | Edição #93às vezes as pessoas têm medo do silêncio. muitas vezes. como têm medo do escuro. como têm medo de perder a voz, a vez e o momento de dizer as coisas.
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dentro do medo de (às vezes) dizer as coisas encontramos certamente o medo de tal abertura e ou vulnerabilidade. dar aos outros “esse” saber deverá dar-lhes poder. e entre nós os outros, sendo que quase todos queremos e tememos o poder, então “o outro ter muito poder” sobre nós parece resultar aterrador. e requer, claro, movimentos de defesa e de emuramento. e assim tornaremos banal a estranha arte de construir muros dentro de nós. mal fadada ocupação.
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há também o medo de perder a vez. o que pressupõe que um lugar (ou posição) nos estava ou já estaria destinado. e mais: sabemos com exactidão qual seria. senão, que outro modo tenho eu de “sentir que perdi a vez” se não soubesse já a vez que me cabia. e é um medo até não muito difícil de admitir: é a minha vez. e a vez seria agora. e se não for no agora que eu defini, então realmente confirmo a sensação de ter “perdido a vez”. mais uma vez.
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o medo de perder a voz me parece justo e justificado. vivemos tempos bem cruéis relativamente a silenciamentos de voz, de vez e de corpo. que uma coisa seria naturalmente perder a voz. outra é que alguém nos force a não usá-la ou nos manipule a desistir dela.
vivemos tempos bem cruéis relativamente a silenciamentos de voz, de vez e de corpo
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já há tanto tempo que experimentamos o medo de se ter perdido a escuta. o que faremos então depois de nos termos perdido da nossa voz?…
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o medo do escuro tem andado vaidoso e belo ultimamente. isto seja: em águas literárias, tem experimentado bom curso a ideia dos escuros e dos sustos feitos ficção. há coisas muito boas e bonitas. creio que é boa ideia que esse arejamento se possa, em livro, acercar dos medos e apequená-los. aos medos. ou acarinhá-los. por que não?
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às vezes as pessoas têm medo dos silêncios. curioso lugar para se estar e se dizer que ali há medo. mas é também um lugar de lentidão e que pode ser, ter, fiapos de luz leve, repentina, amarelada. uma esquina, dentro de nós, ou perto de uma parte do nosso dia, uma esquina pode reter um bom silêncio. como se um filete de som repentino vindo de uma harpa feita kora. um átimo de consciência calma onde uma voz da natureza pudesse falar e dizer “há momentos na vida simplesmente serenos”. o silêncio é também um lugar de mansidão, concentração e convívio íntimo. uma pele interna toda espelhada, nem pele nem espelho. um silêncio por onde o corpo respira e volta a si. mas sem esta cansativa, ruidosa, amontoada trouxa de palavras que às vezes precisamos de escrever ou de dizer.
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talvez o silêncio seja isso de nem dizermos. para que fique melhor dito.
Matéria publicada na edição impressa #93 em abril de 2025.
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