Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

a saudade é uma rua esquisita

é uma espécie de amor isso que uma pessoa (e o seu riso, e o seu modo de ser) nos trouxe? e que nome dar a essa saudade que ainda nos une?

25jul2023 | Edição #72

no dia em que vimos o B. TonPin pela última vez, não sabíamos que se tratava mesmo da última vez. talvez ele soubesse. (isso) não posso afirmar nem dizer. sei que não houve despedida. e ainda hoje isso me perturba (dói?). como pressentir que seria o último aperto de mão ou olhar ou abraço?

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o olhar da Ró ficou triste de repente como uma flor que perdesse a luz do sol. isso, sim, posso chamar de pressentimento ou sentimento. e eu interpretei que era outro assunto qualquer mais longínquo. algo de casa. algo da escola. a Ró murchou os olhos como quem fosse cantar e perdesse a voz. na nossa escola JuventudeEmLuta às vezes o sol fazia isso: desaparecia de repente. e eu via. eu lia o sumir do sol como um sinal triste. não sabia interpretar. mas já sabia ler um indício de tristeza.

‘a vida é olhar para a frente’, dizia a AvóCatarina enquanto fechava ou abria mais uma janela

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(às vezes troco missivas com a mãe do B. TonPin. já ninguém sabe onde anda ele. se em que parte do mundo, se nalgum novo afecto. onde andará “o nosso” B. TonPin? mas quem sou eu ou a Ró para sentir tristezuras se a própria mãe sofre por não saber dele…)

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compreendo, assim, por que tantas vezes me visitam ecos da sua presença nesse lugar seguro que é a palavra “antigamente”. ali onde ele era “nosso”; onde ele era parte integrante do nosso quotidiano. sete ou sete meia, na hora de cantar o hino antes da aula, ele haveria de estar ali. ele haveria de chegar suado, logo de manhãzinha, por que tinha vindo a correr desde casa a atropelar o enorme sorriso que lhe antecedia. ele haveria de cantar o hino connosco e de brincar secretamente de modo a que os professores não detectassem a brincadeira e nós soubéssemos onde ele tinha sabido brincar. é isso; posso dizer de coração aberto: o B. TonPin sabia brincar. com ele; connosco; com a vida.

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a saudade é uma rua comprida, que vira à esquerda, não termina e está coberta por uma neblina que não sabe desaparecer. ele caminha pela neblina. eu, a Ró, a Petra, o Cláudio, o Nucha, a Cira, o Óscar, o Pedro K., a Romena, a Catarina, o Cesário, o Africk, a Kaly, o Joe, o Gilberto, a Lwaya, a Nina, o Maninho, o Brandone, andamos “a controlar” essa rua e a neblina nunca nos permite encontrar o B. TonPin. até a camarada professora María e o camarada professor Ángel andam (por) perto de todos nós. mas a saudade é uma rua esquisita que não costuma permitir a entrada de visitas ao nosso coração.

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(às vezes passo na esquina daquela rua. que tinha aquela casa. que tinha aquele felino. que tinha aquela jaula. que tinha aquelas grades. que teve um menino que foi espreitar. que chegou perto. que foi arranhado pelo felino. às vezes passo na esquina daquela casa mas o menino já não mora nessa cidade.)

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nos dias em que sinto intensas saudades do B. TonPin, fico confuso com toda a rede de sentimentos e sensações que ele me traz. racionalmente, sei que esse nosso querido amigo e colega é uma figura do passado e desse lugar chamado “antigamente”. ele não é quem ele foi. ele não está onde ele “nos foi”. é uma espécie de amor isso que uma pessoa (e o seu riso, e o seu modo de ser) nos trouxe? e que nome dar a essa saudade que ainda nos une? é uma espécie de “amor caducado” isso que sentimos perto da saudade que temos do B. TonPin?

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assusta-me pensar que tenho que olhar para um outro lado da neblina. deixar o B. TonPin ser apenas parte da nossa infância onde ele esteve e quis estar. “a vida é olhar para a frente”, dizia a AvóCatarina enquanto fechava ou abria mais uma janela. a vida é uma margem virada para o futuro.

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(mas, em segredo, ainda me pergunto: onde andará o nosso B. TonPin?)

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.