Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Uma menina

Nada me tocou como o olhar, o corpo, a postura, a testa, as mãos da filha de George Floyd

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

A menina, olhar assustado, se agarra à cintura da mãe com tanta força que é como se quisesse entrar dentro dela e esconder-se. Não tem idade para entender o que se passa, quer desaparecer dali. A mãe discursa, destroçada. Tem longos cabelos lisos e unhas muito compridas. É bela, robusta, com grandes braços e uma voz melodiosa e grave — talvez saiba cantar. Ao falar, está como que esquecida da menina à sua beira e, ao mesmo tempo, ciente de que ela a agarra. Fala como quem sabe e não sabe que está acompanhada, que ali são duas. A criança parece dizer: “Tira-me daqui, leva-me para o meu quarto, quero ir para casa”.

Nem as imagens da revolta nas ruas, nem o vídeo fatídico ou as centenas de colunas de jornal, o fogo noturno nas cidades, a solidariedade mundo fora, nada me tocou como o olhar, o corpo, a postura, a testa, o queixo, o busto, as mãos da filha de George Floyd, que não sabemos se entendeu bem o que se passou e ouve a mãe pedir justiça. O que será o mundo em chamas para ela, ao pé do pai, que não tem visto nas últimas semanas? Vi-a na presença da mãe, mas a imagem revelava-a sozinha no mundo — o que, de alguma forma, está e estará sempre.

Dias depois, uma manchete resgatava-a: “Kanye West pagará estudos da filha de George Floyd”. Entretanto, vejo-a, vezes sem conta, como quem vê uma menina a afogar-se. Perdeu-se na torrente das imagens, nas marchas de protesto, no caudal ininterrupto do rio das notícias, no passar dos minutos, horas, dias, semanas, imagens que passam pela retina dos nossos olhos até ao “lago escuro onde termina/ vosso curso, silente de juncais”, como escreveu Camilo Pessanha. É uma menina às escuras, a braços consigo mesma.

Joelhos empoeirados

James Baldwin evocou em Notes of a Native Son (Notas de um filho nativo) as crianças que conheceu na infância e o modo como, no dia em que o pai foi enterrado, as pernas e os joelhos dos miúdos que por ali andavam os revelavam cabalmente desamparados, imagem que perdura muito para lá das suas páginas: pernas finas, joelhos empoeirados, de quem caminha sozinho, entregue à sua sorte, apesar de ainda não ter idade para responder por si mesmo. De vez em quando as imagens televisivas nos trazem joelhos assim: nos musseques africanos, nos nossos bairros sociais, aqui ao lado, nos campos de refugiados, ali, além. São crianças que não falam para a câmara e surgem no plano de trás, espreitando a lente, às vezes acenando, outras sorrindo, figurantes cuja curiosidade revela a câmara como entidade estranha e invasora.

É só uma menina, menina como as outras. Traz um vestido e tem o cabelo trançado para a ocasião. Na maré das notícias, é feita de espuma, um olhar de segundos que escapa e desaparece à medida que os acontecimentos se sucedem; não um ícone, mas um semblante que foge à memória e não pede para ser lembrado nem é mostrado de modo a inscrever-se dentro de nós. Por vezes, as crianças que mais perduram surgem em fotografias de família tiradas em momentos de felicidade, repescadas após tragédias que adquirem, fora do contexto doméstico, uma tonalidade sombria. Fora dos nossos álbuns de família, atirados para o espaço público, nossos instantâneos de felicidade, qualquer porção das nossas vidas comuns, ganham aspecto simultaneamente vulgar e sórdido.

A imagem da menina triste é, ao contrário, imagem em movimento. Está sozinha, ainda que numa sala cheia e ao lado da mãe. Seus olhos fogem ao contacto directo com as câmaras, são eles que se movem, todo o seu corpo nos diz que quer desaparecer. Ninguém a avisou de nada nem nosso pensamento está nela no momento em que sua imagem nos é oferecida, mas no som do vídeo, na elegia desesperada da mãe. Seus olhos de fugida falam connosco e não percebemos o que estão a dizer. Seu queixo caído é uma negação da nossa presença, como se tivéssemos de pedir desculpa por estarmos a vê-la, a invadir seu rosto, enquanto, do lado de cá do ecrã, pomos a mesa, servimos o jantar e mastigamos.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.