Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Urbanismo em formação

Livros ressaltam a importância de olharmos para as cidades brasileiras a partir das políticas públicas urbanas e habitacionais

24out2021 | Edição #51

Em 1970, o Censo Demográfico publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, subordinado ao Ministério do Planejamento e Coordenação Geral do governo do general Emílio Garrastazu Médici, não apenas apresentou uma novidade, mas um ponto de virada. A população urbana passava a marcar 55,92%. O número já diz muito se lido sozinho. Mais da metade dos brasileiros passavam a viver em cidades, deixando para trás a imagem de um país rural. Mas conta ainda mais se lido em comparação com o passado. Dez anos antes, o mesmo Censo Demográfico indicava que 44,67% da população brasileira habitava cidades e vilas. A década de 60 é, portanto, fundamental para entender a urbanização brasileira e, principalmente, como o país lidou com essas transformações estruturais.

O livro Urbanismo e política no Brasil dos anos 1960 elege justamente essa década como período privilegiado de observação. Organizada por Maria Cristina da Silva Leme, a coletânea conta com textos de pesquisadores e pesquisadoras que integram uma rede de estudos sobre história da cidade, do urbanismo e do planejamento urbano no Brasil. Todos são unânimes em afirmar que a década está longe de ser homogênea e que não pode ser lida de forma isolada, recortada de um antes e depois.

Para além de marcar o ponto de virada rural-urbano, a ruptura democrática com a instauração da ditadura civil-militar em 1964 é uma lente de análise inescapável. “O país amanheceu iluminado pelo sol que percorreu o céu do cerrado na inauguração de Brasília no dia 21 de abril de 1960, mas adormeceu na escuridão dos porões da ditadura, recrudescido com a política de Estado pelo AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968”, escreve Rodrigo de Faria no capítulo “O planejamento urbano no Brasil entre a democracia e o autoritarismo: uma interpretação em quatro dimensões”. Se a metáfora do contraste entre luz e sombra é ilustrativa para dimensionar o tamanho da transformação, os capítulos mostram um quadro que não é pintado em claro-escuro, mas em suaves gradientes de tonalidade.

Se Brasília pode representar as luzes da nova capital, um farol de modernidade do governo jk, sua formação é marcada pela exclusão socioterritorial de outras cidades brasileiras. “Em 1960, a população de Brasília atingia cerca de 127 mil pessoas, em sua maioria operários da construção civil e seus familiares, muitos vivendo em precários acampamentos de obras ou em áreas invadidas”, comenta Leme sobre o capítulo de Simões Jr. acerca da nova capital.

Para além de compartilharem métodos de análise documental e historiográfica, os capítulos compartilham uma perspectiva que serve de fio condutor. A principal preocupação é analisar a década de 60 do ponto de vista da política institucional, ou seja, a partir de como o Estado se organizou, nas diferentes esferas de governo, para encaminhar a enorme transformação urbana por que passava o país. A ruptura democrática é contrastada com diversas continuidades no campo da formulação e da implementação das políticas urbanas. Em verdade, o pós-64 foi marcado pela consolidação da profissionalização do campo do urbanismo e pela criação de políticas urbanas nacionais, como o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau), como aponta o capítulo de Sarah Feldman.

Massas órfãs

A primeira presidente do BNH, Sandra Cavalcanti, encaminha um estudo ao então presidente marechal Castelo Branco para a criação do Sistema Financeiro de Habitação: “Aqui vai o trabalho sobre o qual estivemos conversando. Estava destinado à Campanha Presidencial de Carlos, mas nós achamos que a Revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos ter de nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma balsâmica sobre suas feridas cívicas”. O trecho, reproduzido pela organizadora na introdução do livro, traz diversos elementos que ajudam a explicar a importância que as políticas urbanas e habitacionais tiveram no período da ditadura, ainda que possa parecer intrinsecamente contraditório à primeira vista.

A profissionalização e institucionalização do campo do urbanismo se consolida apesar da ruptura. Mas os autores não atribuem aos militares uma espécie de ato criador iluminado. Pelo contrário. Rodrigo de Faria enfatiza a importância do brevíssimo governo Jânio Quadros, que criou instâncias federais direcionadas às políticas urbanas e regionais: o Serviço Nacional de Assistência aos Municípios (Senam), o Conselho Nacional de Planejamento de Habitação Popular e a Comissão Nacional de Planejamento. A importância de desenvolver políticas específicas ao urbano também é marca forte do governo João Goulart. Os autores são unânimes em destacar a importância do Seminário de Habitação e Reforma Urbana de 1963, conhecido nos meios urbanísticos como Seminário do Quitandinha, analisado em detalhes por Ana Fernandes. O seminário foi um importante momento de articulação em torno de ideias e instrumentos para uma política de planejamento urbano e habitação. Várias dessas ideias iriam encontrar eco apenas em 1987, com a organização do Movimento Nacional pela Reforma Urbana na Assembleia Nacional Constituinte e em torno da Emenda Popular da Reforma Urbana.

Compartilhando a mesma perspectiva de análise da institucionalidade que formou a política urbana do país e a mesma preocupação com análise historiográfica de fontes e registros documentais, Instituições de urbanismo no Brasil: 1930-1979, coletânea organizada por Sarah Feldman, amplia o recorte temporal. O ano 1930 marca o início da inserção dos urbanistas no processo de renovação geracional de uma elite burocrática, com a criação de espaços institucionais exclusivos para essa nova profissão, no contexto do projeto de modernização de Getúlio Vargas. Já 1979 marca, ainda em pleno regime militar, a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU), que teve a função de propor uma política nacional de desenvolvimento urbano pós- -1967, após a Carta autoritária.

Se hoje pode parecer trivial falarmos sobre urbanismo, a formação desse campo levou mais de cinco décadas para acontecer, em todas as suas dimensões. Antes um espaço ocupado por arquitetos, engenheiros e burocratas do planejamento de maneira geral, foram necessários muitos passos para que o urbanismo pudesse ser entendido como uma área de conhecimento e profissional autônoma.

Técnica e política

Feldman analisa esses movimentos a partir da relação entre técnica e política. Observa as instituições como parte de um modelo de administração e, portanto, de escolhas e decisões políticas — e não só como “contêineres de ideias”, em sua própria formulação. A constituição de uma política pública específica para tratar das transformações de um país que se urbanizava de forma acelerada foi marcada pela criação de instituições federais, mas também por outros movimentos. Sarah Feldman ressalta a importância da autonomia dos municípios, que teriam “verdadeira intimidade” com a vida nacional; a sindicalização e organização da profissão, demarcando limites com a engenharia e a arquitetura; e a formação universitária, com a vinda de professores como Pierre Desfontaines e Donald Pierson, estabelecendo as fronteiras com as escolas de belas-artes e politécnicas.

A formação do campo do urbanismo levou mais de cinco décadas para acontecer

“Já nos anos 30, Anhaia Mello, Azevedo e Continentino eram vozes questionadoras dos limites administrativos municipais para a definição de áreas de planejamento. (…) O alargamento do campo do urbanismo que defendiam não se limitava ao aspecto territorial. Anhaia Mello e Azevedo utilizavam em seus textos o termo planning, questionando o uso da palavra urbanismo para designar uma atividade interdisciplinar. Nos anos 40, a palavra planejamento começou a dividir espaço com o termo urbanismo no Brasil.” Para além de uma disputa de nome — que na maioria das vezes também designa uma disputa sobre o objeto a ser nomeado —, a criação do campo vem acompanhada de uma legitimação a partir da técnica. Anhaia Mello defendia uma separação estrita entre funções políticas e administrativas; urbanismo era um conjunto de técnicas razoavelmente blindado da política e, portanto, do questionamento não especializado.

Além da preciosa introdução de Feldman, a coletânea traz estudos sobre instituições específicas e também sobre o pensamento desses homens ilustres que foram precursores do campo, como Louis-Joseph Lebret.

Ambos os livros ressaltam a importância de olharmos para as cidades brasileiras a partir das políticas públicas. Essa não é uma ideia que paira no ar, mas está ancorada em práticas e dinâmicas institucionais, na formação de elites burocráticas, de um pensamento que se autolegitima como técnico, como se não estivesse intimamente imbricado na política. Além disso, propõem um importante e necessário acerto de contas com nosso passado autoritário.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.