Na manhã da terça-feira, 9, uma postagem de cor lilás anunciou que a cantora e compositora Rita Lee partiu “cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou”. Imediatamente, as homenagens e agradecimentos à artista pipocaram nos jornais e nas redes sociais. Sua imagem, compartilhada em vídeos de apresentações, trechos de entrevistas e fotografias por milhares de colegas e fãs, se multiplica entre as muitas versões que apresentou ao longo de uma carreira de quase seis décadas de enfrentamentos sociais e culturais. Rita Lee morreu aos 75 anos. Ela foi diagnosticada com câncer no pulmão em 2021 e estava em tratamento desde então. Ao seu lado estavam seu companheiro de vida e carreira, o músico Roberto de Carvalho, seus filhos, Roberto, João e Antônio Lee, que também seguiram a carreira dos pais na música, e os netos.
A Santa Rita de Sampa nasceu na capital paulista em 31 de dezembro de 1947, na Vila Mariana, filha de Charles Jones, um dentista filho de imigrantes estadunidenses e da italiana Romilda Padula, pianista que abdicou de tudo para se dedicar à família. De pai ateu (mas ufologista, atividade herdade por Rita) e mãe “mais católica que o Papa”, Rita sempre foi “problema” na família. Tocava o terror no Liceu Pasteur, onde chegou a pôr fogo no teatro da escola — décadas depois, tentou visitar o Liceu, mas era persona non grata. Cantava profissionalmente desde os dezesseis anos, quando integrou as Teenage Singers, banda de colegas de escola. Além de Os Mutantes, também integrou a banda Tutti Frutti, no final dos anos 70, começando uma esteira de sucessos autorais. Rita alcançou a marca de 55 milhões de discos vendidos, sendo a quarta artista mais bem-sucedida neste sentido no Brasil. Em outubro de 2008, a revista Rolling Stone promoveu a lista dos cem maiores artistas da música brasileira, onde ocupa o 15 lugar.
‘Eu gosto de desacatar autoridade, eu gosto de remar contra a maré. Eu sou assim desde os primórdios do meu bercinho’
A última postagem de Rita Lee foi sobre a dificuldade de ser mulher na música, numa entrevista de 1993 a Jô Soares. No vídeo, a eternizada rainha do rock declara com riso na fala: “Eu sempre gostei muito de rock pesado. E era difícil você conseguir. Agora, eu vejo umas garotas conseguindo e acho legal. Roqueiro radical tem que ter culhão, diziam”. Em uma entrevista ao documentário Biograffiti, da gravadora Biscoito Fino, emendou: “Rock também se faz com ovários e úteros. Bate em mim se você não concordar”. Palavras que hoje são quase o farol que ilumina não uma luta, mas a maior rebeldia de Rita: o desacato. “Eu gosto de desacatar autoridade, eu gosto de remar contra a maré. Eu sou assim desde os primórdios do meu bercinho”, declarou Rita Lee.
Desacato à autoridade masculina
Se desde os anos 80 ela já se posicionava — e debochava — contra o machismo, é porque havia necessidade de enfrentá-lo. Em conversa com a Quatro Cinco Um, a cantora e escritora Karina Buhr lamentou a morte de Rita Lee e ressaltou que seu posicionamento em oposição ao patriarcado foi de uma importância enorme para todas as mulheres de antes e de agora. “Uma necessidade [de se posicionar] dela, ali onde ela estava, e de todas as mulheres, as que sabiam e as que não sabiam disso. Rita mudou tudo. Abriu possibilidades, deixou as coisas mais alegres e leves, desacatou, debochou de toda autoridade estabelecida. Quem faz isso atinge todo o sistema”, reflete a artista, que tem em Rita uma “inspiração muito forte”.
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De fato, incomodou o sistema. Tanto que foi presa não só uma, como duas vezes. Na ironia, no início e no “final” da carreira. Da primeira vez foi presa pela ditadura militar, mas morreu afirmando que a maconha que disseram ter encontrado com ela teria sido “plantada”, pois ela estava grávida e sem fumar. Estava grávida de Beto Lee, primeiro filho com Roberto. Sempre narrou com orgulho que quem foi checar como ela estava e a salvou foi Elis Regina, um desafeto musical até então. Elis foi visitá-la e tornou o caso público. Depois de cumprir pena em casa e já mãe, começou a receber convites de Elis para se apresentarem juntas, uma forcinha para retomar a carreira. No YouTube é possível acessar a icônica apresentação das duas cantando “Doce de pimenta”. A cantora Maria Rita, filha de Elis Regina, leva o primeiro nome da amiga da mãe. Não é qualquer Rita, é da Lee Jones.
A segunda prisão veio quando Rita já estava meio de saco cheio, um tanto cansada. O ano era 2012 e ela havia lançado seu último trabalho de canções inéditas — gravado em estúdio durante nove anos. O álbum Reza foi tema de novela com a música-título: uma debochada oração que pede “Deus me perdoe por querer/ Que Deus me livre e guarde de você”. Rita já estava cheia. Anunciou que iria parar. Seu último show seria, então, em Sergipe, na cidade de Barra dos Coqueiros, e acabou no melhor estilo Rita Lee: presa por desacatar a autoridade da Polícia Militar local que importunava o público, segundo ela.
“Eu sou do tempo da ditadura, você pensa que eu tenho medo, porra! Venha aqui! Eu sou mulher. Mulher, queridos!”, disse Rita ao ser presa, em 2012. Ela viria a se apresentar mais uma vez, em janeiro de 2013, em São Paulo.
Ela própria se definia como um “desacato à autoridade masculina” e rejeitava, desde criança, que pudessem dizer a ela o que fazer só por ter nascido mulher. Suas memórias estão registradas não só nos vídeos de entrevistas e performances ao longo da carreira, mas sobretudo na autobiografia que escreveu em parceria com o jornalista Guilherme Samora, lançada em 2016 pela Globo Livros. No livro, divaga sobre o avançar da idade: “Quando dizem que a idade está na cabeça, meu fígado e minha coluna dão uma risadinha sarcástica. Mulheres têm a idade que merecem, homens serão sempre crianças”. Em 22 de maio, a editora lançará Outra autobiografia. A obra narra os últimos três anos de vida de Rita e alcançou o topo dos mais vendidos da Amazon na pré-venda, em março.
Lendo sua história, a impressão é que, ainda criança, ela inventou um outro mundo possível — onde não havia muitos impossíveis. Esse seu universo, o universo Lee, prevaleceu sempre: na vida, no palco, apresentando programa de TV, dando entrevistas. Nos shows e em casa. Porra louca. Irreverente. Original. Quebrou os tijolos que estavam em seu caminho desde que nasceu, não os aceitou. À sua maneira, colocou-se intrínseca à história do país, como cidadã, artista e crítica, e obrigatória no repertório da música brasileira.
A escritora e poeta Bruna Beber reflete sobre o que se impõe com a obra de Rita Lee, a descoberta do público diante de suas canções: “Com Rita Lee somos a descoberta dela. Sinto que sou permanentemente descoberta por ela. Pois sua obra nos considera como astros, porque nos olha com atenção e humor, e assim não para de nos transformar, quase sempre no que somos”. A escritora falou com a Quatro Cinco Um ressaltando a aura de liberdade que Rita Lee instaurou com sua obra, liberdade e coragem: “Rita Lee nos libera pela coragem, por isso nos independe com a franqueza e o charme, e, ao nos dizer cafonas, ridículos, pedestres, é só mais uma lição de compreensão, uma volta em torno de seu Sol para agradecer o poder e a luz que ela nos dá”.
Padroeira da liberdade
Tanto a obra quanto a vida de Rita Lee formam uma crônica que atravessa seis décadas de história do país. A artista sempre quis ser lembrada — e será — como uma espécie de padroeira da liberdade, um símbolo que entusiasmasse outras mulheres. Na explosão do rock paulistano, juntou-se ao movimento tropicalista e integrou uma das mais importantes bandas da música brasileira: Os Mutantes. Com “Panis et Circenses”, hoje um clássico de Gil, que “descobriu” o grupo, e de Caetano Veloso, a franzina sardenta Rita aparecia ao lado de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias como um trio psicodélico na televisão brasileira, aquele incômodo na sala de jantar. A música foi lançada em plena ditadura militar no Brasil, em 1968, em forte crítica à estrutura social da época — e atualíssima. Seus dias de Mutantes não durariam muito. Rita conta que foi expulsa. Chorou e decidiu seguir carreira, mesmo “sem culhões”.
Suas últimas aparições sequer foram públicas. A família vinha compartilhando imagens em suas redes sociais desde seu recolhimento em razão do câncer e dos tratamentos invasivos, intercalando com vídeos de acervo de entrevistas e apresentações. De cabelos brancos, óculos coloridos, flores no cabelo, careca, o público fiel da cantora e compositora de uma das maiores trilhas sonoras do país passou a se acostumar com uma Rita Lee realmente diferente daquela dos palcos. Recolhida em seu sítio ou em seu apartamento, era comum publicarem também momentos íntimos dela assistindo à TV em momentos de homenagens, como a que recebeu do programa “Altas Horas”, da Rede Globo, que emocionou a cantora, e o prêmio que recebeu no Grammy Latino 2022 pelo conjunto da obra e carreira. Rita não foi à premiação, mas disse que estava “feliz pra chuchu” e celebrou.
Inspiração
“Rita Lee é sinônimo de alegria. Foi trilha sonora da minha infância e adolescência e continua sendo — meu filho de quatro anos é obcecado por ela, sobretudo pela [canção] “Erva venenosa”, conta a poeta Alice Sant’anna. “Erva venenosa” foi lançada em 2000, debochando do terror em torno da maconha. Em entrevista ao Programa do Bial em 2017, o entrevistador a interpelou sobre drogas e começou pela erva. Com sorriso sem vergonha, Rita devolveu. “Pensei que fosse falar de Coca-Cola”. O deboche de Rita era assim, afiado na fala e no canto.
“A música de Rita Lee transforma tudo em festa. Ícone fashion, linda, irreverente, combativa, rebelde, corajosa, debochada, genial, inquieta. É uma referência única, uma lição de liberdade. Suas músicas nos provocam a sair da mesmice, a amar mais e melhor e a ‘fazer tudo o que queremos fazer’”, completou Alice.
A cantora Julia Mestre, que ganhou a internet cantando covers de Rita Lee, faz questão de marcar a importância da rainha do rock para a carreira de outras artistas e dos caminhos abertos por ela. “A maior compositora que o Brasil já conheceu”, declarou a artista. “Todos nós temos um pouco de Rita dentro de si, ela realmente inspirou muitas gerações e seguirá eterna com sua obra, suas canções. Rita tinha o dom da comunicação e ela veio para chacoalhar qualquer um, qualquer pensamento”. Além dos covers, Mestre reconhece a presença de Rita nas próprias composições. “Quase todas as canções que escrevi tinham um pouco dela ali, minha deusa inebriante. Rita Lee sabia brincar com as palavras e era ousada, sempre. Fazia essa mistura com as línguas portuguesa, espanhola, inglesa, puro prazer, sempre com muito bom gosto”, descreve.
Em suas letras, a luta pelo espaço das mulheres e de como eram oprimidas estruturalmente sempre foi uma preocupação e uma mensagem. Ao interpretá-las, Rita dava vida a essa intransigência na forma e na voz. Sufocou tabus e cantou o sexo, o orgasmo, a nudez. Rogou por liberdade. Cantou “Luz Del Fuego” (Eu hoje represento a loucura/ Mais o que você quiser/ Tudo que você vê sair da boca/ De uma grande mulher/ Porém louca!), “Elvira Pagã” (Santa, santa, só a minha mãe e olhe lá!), a emblemática “Cor de rosa choque” (Mulher é bicho esquisito/ Todo mês sangra), quase arrematando com os versos “Toda mulher… é meio Leila Diniz!”, da canção “Todas as mulheres do mundo”. “Pagu”, com Zélia Duncan, foi sucesso nos anos 2000: “Nem toda brasileira é bunda/ Meu peito não é de silicone/ Sou mais macho que muito homem”.
Rita Lee era uma insubordinada por excelência e, embora seu modo de viver a vida “doa a quem doer” tenha doído em muita gente, ela provocou pequenas insubordinações nos “normais e caretas”. Provocar talvez fosse seu ofício por aderência: o que ela viveu, disse e produziu, desde a infância com as irmãs Virgínia e Mary Lee Jones, de quem era a caçula, foi uma grande provocação de “ser quem se é, de estar onde está”. Num belo dia, botou para quebrar e foi à balbúrdia fazer o que queria fazer. Fez bonito, sem espelho. Deixou na classe artística e no público um gosto de quero mais e um misticismo de rebeldia inalcançável, que muitos tentam emular.
A cantora vivia na mira da censura da ditadura militar e teve versos famosos vetados, como “me deixa de quatro no ato”, de “Lança perfume”. Rita recusava o ativismo, mas desconcertou o regime à sua maneira, sempre única. “Sabia surfar nas ondas, nas dinâmicas. Soube ser cometa”, diz a cantora e compositora Letícia Novaes, a Letrux. “Não há nenhuma cantora que não tenha mamado na teta de Rita Lee. Todas nós deliramos com a performance dela, todas nós nos apaixonamos por sua voz, suas músicas contagiantes, suas letras engraçadas, tesudas, criativas. Rita Lee era um poço de criatividade e graça. Foi apenas passear. E eu continuo daqui embasbacada, e para sempre devota”, despede-se Letrux.
Para muitas, foi uma inspiração contínua. “Um farol”, diz Karina Buhr. “Acho que isso toca todo mundo. Para mim foi muito antes de sonhar em cantar ou tocar, eu cantava tudo dela, como faziam tantas meninas na década de 80. Minha tristeza hoje é como a de quando morre uma pessoa próxima muito amada, é um pedaço da vida da gente que vai. Ela foi e será sempre importantíssima para as mulheres, mas também para os homens, para todo mundo. Trincheiras foram abertas e isso inspirou tudo ao redor”.
“Mania de você”, “Doce vampiro”, “Chega mais”, “Baila comigo” e o estouro “Lança perfume” fazem parte da trilha sonora de muitas gerações. Rita transformou sua música, de alguma forma transgressora, até pela figura desarranjada com que se apresentava — pulando, com nariz de palhaço —, que caía no gosto do povo e conquistava as rádios brasileiras. Rita era uma máquina de fazer hits com letras que se conectavam com a realidade dos brasileiros, em especial das mulheres brasileiras. A ironia fina se revelava em seus sorrisos de canto de boca e seus gestos inesperados, sempre chocando ou surpreendendo quem estivesse por perto ou assistindo. Foi ela quem estreou o selinho de Hebe Camargo: entrou no estúdio da apresentadora e a beijou.
Verso e prosa
A bruxa das palavras não era somente compositora, mas também tinha um grande talento na prosa, como escritora dedicada a livros infantis e à causa animal, além de biografias e livro de imagens inéditas de sua trajetória: desde os anos 80, Rita Lee publicou várias obras, como os quatro livros da saga Dr. Alex (Globinho), publicados entre 1986 e 1992, FavoRita (Globo, 2018), Amiga ursa: Uma história triste, mas com final feliz ( Globo, 2019), e compilados de contos, como Storynhas (Companhia das Letras, 2013), com a cartunista Laerte, e Dropz (Globo, 2017), além das duas autobiografias e Rita Lírica (Melhoramentos, 1996), uma coletânea de 123 letras escritas por ela.
Em suas memórias, deixa marcados seus traços indissociáveis: a rebeldia, a inconsequência medida, o amor desmedido, a paixão pelos animais, o grande amor por Roberto de Carvalho e seus filhos. Não poupa autocrítica, não gosta nem mesmo da própria voz. Modesta, diz que não canta, só se apresenta. O deboche esteve presente até mesmo quando imaginou sua própria morte, em trecho que viralizou em diversas redes sociais no que chamou de “Profecia”: “Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. [] Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão ‘Ovelha negra’.” Tratou logo de dizer que queria ter a certeza de ter feito um monte de gente feliz e deixou escrito o epitáfio: “Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”.
Roqueira convicta, transgressora bendita. Mal poderia ela imaginar. Nesta terça-feira, o Brasil parou atônito diante de uma realidade em que não há mais Rita Lee viva em corpo, mas agradecido por tudo o que ela entregou à música e à cultura do país. Até o fim, surpreendeu. Seu velório será aberto ao público no Planetário do Parque do Ibirapuera, local que frequentava desde os tempos em que não era parque ainda — ia fazer piquenique com o pai. Como desejou, seu corpo será cremado em cerimônia privada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou luto oficial de três dias em todo o país; nas redes sociais, Lula lembrou que ela julgava inapropriado o título de rainha do rock, mas que o apelido faz jus “a sua trajetória” — na qual lançou quarenta álbuns, sendo seis com os Mutantes e 34 na carreira solo. Está justificado o auê.
O velório de Rita Lee no Planetário do Parque Ibirapuera está sendo realizado nesta quarta, 10, das 10h às 17h. No local, haverá uma projeção especial das constelações e estrelas na mesma posição em que estavam no dia em que a cantora nasceu, em 31 de dezembro de 1947.
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NOVEMBRO, 2024