Literatura brasileira,

O grande personagem da própria escrita

Edição especial de ‘O encontro marcado’ comemora o centenário de nascimento do escritor mineiro Fernando Sabino

11out2023 | Edição #74

Fernando Sabino faria cem anos no dia 12 de outubro deste ano — o “dia da criança que sou até hoje”, costumava dizer o mineiro de Belo Horizonte. Por ironia, morreu um dia antes da data de que tanto gostava, em que completaria 81 anos, em 2004. Nem a própria morte lhe escapou à escrita. Deixou escolhido o epitáfio de sua sepultura: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”.


Fernando Sabino tocando bateria, década de 1990.

O menino ficaria marcado em tudo o que escreveu, representando sua memória da infância em Minas Gerais. Ali, ainda adolescente, participou de concursos de contos da revista Carioca, começou a trabalhar como jornalista e publicou o primeiro livro, Os grilos não cantam mais (Pongetti, 1941), uma coletânea de contos. 

Por esse primeiro livro, recebeu uma carta de Mário de Andrade, com quem começou uma longa amizade, hoje conhecida por meio da correspondência que trocaram, publicada em Cartas a um jovem escritor e suas respostas (Record, 2003).  

“Eu me pergunto se sua tendência é realmente para o conto e não para o romance. Sinto em muitos dos nossos cronistas, e em você, romancistas verdadeiros, que por preguiça, por falta de tomar fôlego, erram de espécie”, escreveu Mário de Andrade em uma das correspondências. 

Sabino seria por toda a vida cobrado pela crítica e por seus leitores a publicar um romance, mesmo depois de ter escrito aquele que impactou a literatura brasileira: O encontro marcado, publicado pela Record em 1956. O livro ganha agora uma edição comemorativa de capa dura, com três textos (dois inéditos) que comentam a atualidade e a fortuna crítica da obra ao longo de sete décadas. 

Biscoitos e pirâmides

“Como cronista, ele devia estar pensando no assunto, tinha a ideia de ser romancista”, comenta o escritor e jornalista Ruy Castro, que conheceu e conviveu com Sabino no Rio de Janeiro. “Guimarães Rosa dizia para ele: ‘Não faça biscoito, faça pirâmide’, como quem diz: faça romances! E o Fernando usou essa história várias vezes, dizia que o ‘biscoito também é filho de Deus: nem Ramsés fazia uma pirâmide todo dia’.” 

Apesar do comentário recorrente, Sabino escreveu dezenas de novelas, contos e romances, como O grande mentecapto (1979, com o qual ganhou o Jabuti de melhor romance), O menino no espelho (1982)  e Os movimentos simulados (2004), obra que revisita manuscritos abandonados, lançada pouco tempo antes de um câncer o levar. 

O encontro marcado é, no entanto, o grande divisor de águas em sua carreira, a obra que tornaria definitiva a ideia de viver de literatura. No romance, Sabino conta a própria história, reinventando o que viveu e desejou viver ao lado dos amigos que ficaram conhecidos como “os quatro mineiros do apocalipse”: Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos — todos saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, assim como na história de Eduardo Marciano, o protagonista da obra. 

O romance de Sabino atravessa o tempo impactando diversas gerações

Para Rodrigo Lacerda, editor que organizou, em 1996, a obra reunida de Fernando Sabino, publicada pela editora Nova Aguilar, e agora a edição comemorativa de O encontro marcado, o romance apresenta um estilo narrativo mais influenciado pela literatura norte-americana do que pela francesa. “A rapidez do texto, as frases curtas, muito diretas, o ritmo acelerado da prosa. Só está no texto aquilo que é absolutamente necessário”, analisa. 

Para esta 105ª edição, Lacerda reuniu três textos como leitura complementar, dando uma espécie de “moldura definitiva” ao livro. Na apresentação, o escritor Michel Laub avalia como o romance atravessa o tempo impactando diversas gerações, ressaltando o aspecto de a obra ser lida como um relato geracional de autoficção que já atravessa sete décadas. 


Fernando Sabino com a primeira edição de Encontro Marcado, década de 1950.

Completa a edição um tesouro crítico. Adauto Leva, livreiro e pesquisador da obra de Sabino, compilou desde as primeiras análises às mais recentes, que registram o livro como uma experiência filosófica existencialista. “Por meio da história do Eduardo Marciano e desse grupo de amigos, o livro flagra várias encruzilhadas do país”, arremata Lacerda.

Sabino pediu que a escritora e amiga Clarice Lispector escrevesse uma carta para falar do então novo livro. Ela se diz surpresa pelas “frases cortantes”, que parecem “ter a intenção de não dizer nada mais do que dizem”. Clarice se disse também angustiada pela rapidez com que o tempo se move na história, “sem que se possa fazer nada”, conforme se lê na carta escrita em Washington, em 8 de janeiro de 1967. O documento é o terceiro texto que integra a nova edição.

Um homem justo

“Ele tinha uma rotina de parar em frente à máquina de escrever, por nove horas, e ficava assim, mesmo que não escrevesse nada”, conta Bernardo Sabino, filho do escritor. Sobre a rotina e a convivência com o pai, ele relembra que o autor tinha o hábito de sair às ruas com caderno ou blocos de papel para não esquecer nada que quisesse anotar. Do pai, lembra mais do homem do que do escritor. “Ele gostava muito de conversar com as pessoas simples. Com o jornaleiro, com o porteiro. Era uma pessoa muito preocupada com o bem-estar e a justiça”, recorda. 

“Fernando era uma pessoa muito justa”, corrobora Ruy Castro. “Quando ele se casou com a primeira mulher, ganhou um cartório. Alguns anos depois, ele se separou e tentou fazer uma coisa que ninguém faria.” Ruy se refere ao fato de Sabino ter devolvido o negócio para a família da primeira esposa. Tratava-se de Helena Valadares, filha do então governador de Minas Gerais, Benedito Valadares. “Quando se separou da minha mãe, ele saiu sem dinheiro para a mudança. Não era apegado a coisas materiais’’, conta Bernardo, filho do segundo casamento, com Anne Beatrice. 

Ele inaugurou um modelo de negócios atípico, sendo dono de 50% dos direitos autorais de sua obra 

Apegado a coisas materiais ou não, Sabino foi, além de escritor, empresário. Inaugurou um modelo de negócios atípico até mesmo para os parâmetros atuais, sendo dono de quase 50% dos direitos autorais de sua obra. “Meu pai criou esse modelo de ser dono dos livros”, conta Bernardo. “A gente tem 42% da venda do livro, 10% da distribuição e paga a tiragem, mas isso está mudando, pois, se é a gente que paga, não investem muito em divulgação.” 

Aliás, Fernando Sabino foi também editor. Com Rubem Braga, abriu, em 1966, uma nova casa editorial, a editora Sabiá, depois da aventura que teve ao abrir a Editora do Autor, em 1960. Enquanto durou, os amigos publicaram grandes autores, como Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Pablo Neruda, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, além de obras dos próprios fundadores da editora, entre outros. A Sabiá acabaria vendida para a editora José Olympio, que hoje pertence ao Grupo Editorial Record.

Reclusão

Em 1991, Sabino lançou sua obra mais malvista pela crítica: Zélia, uma paixão, biografia romanceada de Zélia Cardoso de Mello, ex-ministra da Economia do governo Collor, e sua paixão por Bernardo Cabral, ex-senador e ministro da Justiça e Agricultura. Roberto Ventura, então professor de literatura comparada na Universidade de São Paulo (USP), escreveu no jornal O Estado de S. Paulo, naquele ano, que Sabino havia sucumbido ao sucesso de um “folhetim sensacionalista” e que a obra unia um “exibicionismo compulsivo de Zélia e o comercialismo barato de Sabino”. O escritor tinha, à época, quase setenta anos e adotou, a partir de então, um estilo de vida caseiro e longe de entrevistas. 

“Ele mesmo me contou que Zélia, uma paixão acabou com sua carreira, nunca mais ele fez nada importante. Ficou absolutamente magoado com todo mundo que o atacou ou não o defendeu”, relata Ruy Castro. 

Correspondências

Além de ter escrito um sem-fim de crônicas e contos, uma série de novelas, uma breve autobiografia e quatro grandes ficções — tendo recebido, em 1999, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra —, Sabino publicou sua correspondência, organizada por ele e sua inseparável secretária, Fabiana. As cartas estão publicadas nos livros Cartas a um jovem escritor e suas respostas, enviadas a Mário de Andrade; Cartas perto do coração (2001), com Clarice Lispector; e Cartas na mesa, com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. 

Mexendo nos pertences do pai, Bernardo Sabino encontrou, numa caixa em que se lia “Manuel Bandeira”, correspondências do autor com o poeta. Apesar de ter escolhido publicar grande parte das trocas de cartas que mantinha com amigos, havia um poema inédito de Bandeira dedicado a Sabino. “Bandeira nunca publicou, nós também não”, conta Bernardo. Hoje ela faz parte do acervo que está na Fundação Casa de Rui Barbosa, que organiza uma exposição sobre o escritor.

“Estiveste nos meus lutos, / Estiveste nos meus prantos, / Nos meus gestos dissolutos, Pobres! Ao cabo tão santos…”, diz a estrofe que encerra o poema inédito. “Tu” é o título do poema, que traz a dedicatória: “A Fernando Sabino, lembrança de Manuel Bandeira na data de 30 outubro 45”.

“De alguma forma, ele voltou a ser menino, voltou para as salas de aula, e as crianças o adoram”, conta Bernardo, que tem se ocupado do centenário do pai, mas não só: há muitos anos, ele se dedica a projetos de educação que levam a obra de Fernando Sabino às escolas, com livros, filmes e atividades extracurriculares. “Já passamos por cem cidades com o projeto, atingimos um milhão de alunos em sala de aula”, relata. Foi em sala de aula, aliás, que o filho conheceu o pai além do homem, o escritor. “Ninguém escolhe o pai que vai ter”, diz. 

Quem escreveu esse texto

Guto Alves

Jornalista e produtor cultural.

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.