Música,

A despedida de Milton Nascimento

Ao completar oitenta anos e se despedir dos palcos, o músico mostra que sempre teve lado: o do povo brasileiro, por quem cantou e compôs em busca de reparação

18nov2022 | Edição #63

Reverenciado por artistas consagrados, alojado no coração do público que o acompanha, cercado de prêmios que eternizam sua carreira, não foge a Milton Nascimento, que se despediu dos palcos no último domingo (13 de novembro), a busca por aquilo que é simples, popular e, muitas vezes, apagado. Em toda a sua carreira — são seis décadas de travessia —, Bituca procurou se encontrar com o Brasil e consigo mesmo ao buscar em cada canto da cultura e da história brasileira a inspiração para escrever, cantar e eternizar as marcas de nosso povo e de nosso passado, sempre atento ao tempo presente e ao que virá.

A ebulição social e política que o país vive parece ser o cenário ideal para quem cantou por abolição e liberdade se despedir dos palcos. Especulo que deve haver algum desencanto, mas com toque de esperança, no canto de quem precisa evocar em seu último espetáculo a frase “Viva a democracia!” a um estádio lotado e a milhares de brasileiros que assistiram, emocionados, a sua despedida por transmissão ao vivo. Deve haver cansaço nas costas de um grande artista, aos seus oitenta anos, após ter vivido diversas faces de um país e ter escrito e cantado quase todas elas, de um artista que busca as raízes mais profundas que esta terra enterra.

“Porque se chamavam homens/ Também se chamavam sonhos/ E sonhos não envelhecem/ Em meio a tantos gases lacrimogêneos/ Ficam calmos, calmos, calmos…” (“Clube da esquina n. 2”, com Lô e Márcio Borges).

É com a grandeza de quem forjou essa trajetória que Milton Nascimento se despede dos palcos, apesar de deixar a sensação de estarmos nos despedindo de um pedaço do Brasil, especialmente quando a despedida se dá tão próxima à morte de nomes como Aldir Blanc, Elza Soares e Gal Costa. Uma geração, uma leva de nomes que norteiam a cultura brasileira e que se preparam para a despedida.

“Mas renova-se a esperança/ Nova aurora a cada dia/ E há que se cuidar do broto/ Pra que a vida nos dê flor-or e fruto” (“Coração de estudante”, Wagner Tiso e Milton Nascimento, 1983)

A esperança é a que prenuncia Milton ao dizer que se despede dos palcos, mas jamais da música. E a resposta que podemos dar é dizer que Milton se despede, mas nós não nos despedimos de sua música, pois não existe música sem Milton ou Milton sem música.

Tambores de Milton

A trajetória muita gente já conhece. Carioca impossível, mineiro por transferência, Milton foi adotado no Rio de Janeiro e levado para viver em Três Pontas, no interior de Minas Gerais. Lília, que o adotou no Rio e o levou para Minas, e a quem Bituca guarda no coração e na belíssima canção que leva seu nome (“Lília”, Clube da Esquina, 1972), era professora de música e teria sido aluna de Villa-Lobos. A canção que a homenageia, conta o artista, “não tem letra porque não existe no mundo uma só palavra que possa definir a beleza dessa mulher”.

Em Três Pontas, Milton se conecta com Minas Gerais, suas montanhas, o relicário do sagrado folclórico e o divino manifestado em tradições como os corais, os sinos, o apito do trem e a Folia de Reis, marcas que o compositor levaria por toda a sua carreira. Em Três Pontas, Bituca descobriu a música e a essência do que lhe respondia o eco de seu canto nas montanhas que o cercavam. O rouxinol que aprendeu a cantar as notas que sua sanfona não alcançava. A voz preciosa. Nosso iauaretê, a onça brasileira, o jaguar mineiro, assim alcunhado por Tom Jobim em um poema no qual o músico reverencia Milton, comparando-o com o felino e o chamando de “meu carioca mineiro”.

A ebulição que o país vive parece ser o cenário ideal para quem cantou por abolição e liberdade se despedir dos palcos

Morando em Belo Horizonte, eu me mudei certa vez para uma república, enquanto estudava jornalismo. Assim que cheguei ao local pela primeira vez, deparei com a placa: “Museu Clube da Esquina”, na fachada do prédio em que dividiria apartamento com desconhecidos, no Edifício Levy, no centro da cidade. Ali, naquele prédio onde eu moraria, havia vivido Milton Nascimento em uma pensão, logo que se mudou para a capital. Confesso que vivi algum encanto com as histórias que podia dividir com ele ao imaginá-lo chegando a Belo Horizonte e, assim como eu, indo morar naquele mesmo edifício com desconhecidos enquanto estudava.

Vivendo ali, me contaram a lenda de que foi ao ouvir os acordes do violão de Bituca, que tocava e cantava na escada de serviço, que a família Borges o conheceu — os irmãos Marilton, Lô e Márcio, com quem “fundaria” depois, já em Santa Teresa, o Clube da Esquina. Lô Borges confirma a história e diz que “o que ouvi era divino, não era humano”. Era o encontro seminal do álbum homônimo, considerado o mais importante da música brasileira, segundo um júri convidado pelo podcast Discoteca básica, que reuniu 162 especialistas de diferentes áreas, como jornalistas, músicos e produtores.

Em sua despedida, Milton fez questão de mencionar o fato e convidar os velhos parceiros ao palco. A última vez que eu havia visto membros do grupo juntos foi também dentro de um encanto que me conectava a toda aquela ancestralidade mágica que carrega Milton Nascimento, num show no gramado da Reitoria da ufmg, em comemoração aos quarenta anos do grupo, em 2012. Enquanto a lua cheia brilhava no céu e Wagner Tiso dedilhava “Cais” no piano, Milton disse: “Daqui não enxergo, mas me disseram que a lua está muito bonita”. E então cantou: “A lua girou, girou, girou/ Traçou no céu um compasso/ A lua girou, girou…/ Eu bem queria fazer/ Um travesseiro dos seus braços/ Eu bem queria fazer…”, canção do álbum Geraes, de 1976. Eu ouvia Milton nos discos e acompanhava sua carreira, mas ali, naquele dia, tive a certeza do tamanho e da vastidão que representava sua obra e seu repertório, especialmente ao lado de Lô Borges e do maestro Wagner Tiso.

Em São Paulo, havia Elis

Antes de levar Minas Gerais ao destaque na cena nacional com o movimento e o álbum Clube da Esquina, Milton já havia se lançado em uma carreira sem volta na música brasileira ao apresentar a Elis Regina a “Canção do sal”, em um encontro em São Paulo. Elis gravou a música e também as inesquecíveis “Morro Velho” e “Travessia”. Foi um sucesso absoluto, e, como acontecia com todos que ela gravava, Milton estourou junto. Os primeiros álbuns, Milton Nascimento/Travessia, Courage, Milton Nascimento e Milton começavam a descortinar um talento inabalável, comendo quieto pelas beiradas. Encantou não só o Brasil como o mundo. E em seu cantar sempre se encarregou de levar Minas Gerais aonde quer que fosse, seja pelo jazz, pelo blues, pela MPB ou pelo cancioneiro folclórico.

Foi com essas três canções lançadas por Elis, e com “Tambores de Minas”, que Bituca iniciou o show de despedida, dedicando-o a Gal Costa e homenageando Elis Regina. “As três músicas que acabei de cantar foram gravadas por um grande amor da minha vida, Elis Regina”, declarou Milton a um Mineirão lotado com quase 60 mil pessoas que gritavam: “Bituca, eu te amo!” — e que ouviram de volta: “Eu também amo vocês”.

Nada será como antes

Pelas canções, Milton interpretava o entorno, sua própria trajetória e a política do país e traçava seu caminho. Em “Travessia”, composta com o amigo e jornalista Fernando Brant, Milton avisa: “Estou só e não resisto/ Muito tenho pra falar/ Solto a voz nas estradas, já não quero parar/ Meu caminho é de pedra/ Como posso sonhar”. Em “Três Pontas”, relembra o interior onde viveu, com a nostalgia do não lugar, já inacessível senão na memória: “Rever gente que partiu/ Pensando um dia em voltar/ Enfim, voltou/ No trem/ E voltou contando histórias/ De uma terra tão distante do mar/ Vem trazendo esperança para quem quer/ Nessa terra se encontrar”.

Já no álbum de estreia, destrincha as tristezas da desigualdade e da escravidão. Em “Morro Velho”, conta a amizade de dois meninos, um negro e um branco, numa fazenda, “no sertão da minha terra”, onde tudo é verde, correndo pelas estradas atrás de passarinho, realidade que dá lugar ao “lugar de cada um”. “Filho do senhor vai embora/ Tempo de estudos na cidade grande/ […] Quando volta já é outro/ Trouxe até sinhá mocinha pra apresentar/ Já tem nome de doutor/ E agora na fazenda é quem vai mandar/ E seu velho camarada/ Já não brinca mais, trabalha”. Ainda um jovem compositor , Milton mexe em feridas que poucos ousavam enfrentar.

Em Três Pontas, Bituca descobriu a música e a essência do que lhe respondia o eco de seu canto nas montanhas

Em “Canção do sal”, como fez em boa parte de suas composições, ele evoca o labor e a dignidade do trabalhador brasileiro, que abdica da vida para trabalhar arduamente, sem direitos nem dignidade e que, incansavelmente, tem sua força de trabalho explorada, na esperança de ver um futuro diferente e revolucionário. “Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir/ E ao chegar em casa encontrar a família sorrir/ Filho vir da escola, problema maior é o de estudar/ Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar.” Quando escreve sobre os pescadores e canoeiros, em parceria com Dorival Caymmi e Nelson Motta; sobre os maquinistas; ou em “1º de Maio”, parceria com Chico Buarque, Bituca acena ao futuro, um alerta a gerações, que ressalta a luta de classes na vida sindical brasileira.

A meticulosidade no repertório de Milton é também paradoxal: enquanto vasta, toca, com delicadeza e o cuidado de quem pesquisa e escolhe o que quer, nos mínimos detalhes de nossa oprimida e opressora história, com uma diversidade de composições que se tornaram gigantes, e até mesmo perdidas em meio a tantas joias que narram seu povo, suas próprias dores e seu país. O artista segue tocando as cicatrizes profundas do povo brasileiro, à revelia da truculência da censura e da ditadura militar, tendo sido ele próprio censurado por diversas vezes.

“O chão, o chão, o sal da terra, o chão, faca amolada/ Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia/ Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia/ Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser muito tranquilo” (“Fé cega, faca amolada” Milton Nascimento com Ronaldo Bastos).

O Brasil não é só litoral

No verso eternizado em “Para Lennon e McCartney”, faixa da autoria de Brant, Lô Borges e Márcio Borges, lançada no álbum Milton, em 1970, o músico evoca: “Sou do ouro/ Eu sou vocês/ Sou do mundo/ Sou Minas Gerais”. Essa evocação percorre quase todo o repertório de Milton. Minas Gerais nunca esteve desgrudada de seu canto, mas para além do ouro e das montanhas, dos “Escravos de Jó” e do “Morro Velho”, ele carregou em sua voz a musicalidade mineira encontrada nas entranhas do estado, na religiosidade, no folclore, mas não só a musicalidade mineira, se não a de um país, que fez questão de percorrer.

“Uma notícia está chegando lá do interior/ Não deu no rádio, no jornal ou na televisão/ Ficar de frente para o mar de costas pro Brasil/ Não vai fazer desse lugar um bom país” [“Notícias do Brasil (os pássaros trazem)”, Milton Nascimento com Fernando Brant, 1981]

Com “Ponta de Areia”, outra parceria com Fernando Brant, um coral de crianças entoa com os sinos da igreja o prenúncio do fim. E a voz de Milton entra como um instrumento: “Ponta de areia/ Ponto final/ Da Bahia-Minas, estrada natural/ Que ligava Minas ao porto, ao mar/ Caminho de ferro, mandaram arrancar […] Casas esquecidas, viúvas nos portais”. Nessa canção, Milton e Brant tratam de um tema já abordado em reportagem de Fernando: a extinção da Estrada de Ferro Bahia-Minas e seus impactos, criando cidades desertas e desemprego, um prejuízo que o país amarga até hoje eternizado na poesia e no delicado repertório de Bituca.

A religiosidade e o folclore com que teve contato na infância e adolescência com a mãe Lilia e o amigo Wagner Tiso, ainda em Três Pontas, também deixam seus rastros de Brasil na obra de Milton. “Sentinela”, gravada com introdução de Nana Caymmi, traz uma imersão crítica na fé católica, com uma citação do Evangelho em um canto gregoriano: “Meu senhor, eu não sou digna de que visite a minha própria morada/ Porém se tu desejas, podes me visitar”.

Nesse rastro folclórico e religioso, Milton traz a Folia de Reis, o canto sertanejo e as cantigas populares e laborais, em obras adaptadas como “Cio da terra” , “Cálix bento”, “Cuitelinho”, “Peixinhos do mar” (cantiga de marujada com adaptação e arranjos de Tavinho Moura) e “Beira-mar novo” (canção folclórica do Vale do Jequitinhonha com adaptação de Frei Chico e Lira Marques), em gravações feita por Milton, no musical Ser Minas tão Gerais, gravado em 2004, junto com o coral Meninos de Araçuaí e o grupo teatral Ponto de Partida.

No espetáculo, Milton mergulha como ator e cantor, misturando seu repertório à poesia de Carlos Drummond de Andrade. Ser Minas tão Gerais coroa a pesquisa de Milton que compõe um Brasil simples, bonito, vasto, plural e aviltado.

Em “O cio da terra”, canção composta por Milton Nascimento e com letra de Chico Buarque, lançada em 1977, ouve-se: “Afagar a terra/ Conhecer os desejos da terra/ Cio da terra, propícia estação/ E fecundar o chão/ Debulhar o trigo/ Recolher cada bago do trigo/ Forjar no trigo o milagre do pão/ E se fartar de pão”. Segundo Chico, é “uma canção de trabalho agrário” que Milton compôs inspirado no canto das mulheres camponesas na colheita do algodão do Vale do Rio Doce.

Busca para dentro do Brasil

Em 1998, o álbum cultural-biográfico Nascimento ganhou o 40º Grammy na categoria World Music. Segundo Milton, “o álbum é uma busca para dentro do Brasil”. O trabalho apresenta canções como a ancestral “Tambores de Minas”, que preserva a história de Minas Gerais, seus tambores e aqueles que neles bateram “até sangrar a mão”. “Era um, era dois, era cem/ Mil tambores e as vozes do além/ Morro velho, senzala, casa cheia/ Repinica, rebate, revolteia. […] Quando chega a febre ninguém segura/ Bate forte até sangrar a mão/ Os tambores de Minas soarão/ Seus tambores nunca se calaram/ Os tambores de Minas soarão.” E também outras emblemáticas como “Louva-a-Deus”, “Levantados do chão” e “O rouxinol”, em parceria com a viola caipira de Wilson Lopes.

“O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou/ O que foi feito da vida, o que foi feito do amor/ Quisera encontrar aquele verso menino/ Que escrevi há tantos anos atrás/ Falo assim sem saudade, falo assim por saber/ Se muito vale o já feito, mais vale o que será/ Mas vale o que será” (“O que foi feito de Vera”, Milton Nascimento com Fernando Brant, 1978)

Ressalta-se aqui também o disco Anima (1982), com participação do grupo de percussão Uakti e Caetano Veloso, em especial as faixas “Evocação das montanhas”, “As várias pontas de uma estrela”, “Comunhão” e a histórica “Essa voz”, com a música incidental da gravação de “O que foi feito de Vera” na voz de Elis Regina. Também de 1982, é reverenciado o musical “Missa dos quilombos”, feito em parceria com Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com a forte canção “Comunhão”, de Milton e Brant: “Eu quero paz eu não quero guerra/ Quero fartura, eu não quero fome/ Quero justiça, não quero ódio/ Quero a casa de bom tijolo/ Quero a rua de gente boa/ Quero a chuva na minha roça/ Quero o sol na minha cabeça/ Quero a vida, não quero a morte não”. Milton sempre teve um lado: o do povo brasileiro, e por ele cantou e compôs em busca de reparação e menos desigualdade social.

Já em Txai, de 1990, outro grande encontro com o Brasil se dá no repertório de Bituca, em busca de e em um aceno aos povos originários, um trabalho que nasceu a partir de uma expedição à floresta amazônica e fez parte de uma campanha mundial de apoio à Aliança dos Povos da Floresta, coordenada pela União das Nações Indígenas e pelo Conselho Nacional dos Seringueiros. O álbum foi gravado com participação de povos originários, abrindo com a canção “Overture”, com Davi Kopenawa Yanomami. Participaram os povos Yanomami, Kayapó da aldeia A’Ukre, Paiter, Waiãpi, com participações de Tsaqu Waiãpi e River Phoenix.

Pelas canções, Milton interpretava o entorno, sua própria trajetória, a política do país e traçava seu caminho

“Txai é fortaleza que não cai/ Mesmo se um dia a gente sai,/ Fica no peito essa dor/ Txai, este pedaço em meu ser/ Tua presença vai bater/ E vamos ser um só/ Lá onde tudo é e apareceu/ Como a beleza que o sol te deu/ É tarde longe também sou eu.” (“Txai”, Milton Nascimento com Márcio Borges, 1990)

Em Pietà, álbum de 2002, Bituca se volta ao sagrado mineiro encolhido, em um nobre gesto de se “apequenar”, ainda que gigante, para abrir espaço a novas vozes e novos compositores, revisitando o próprio repertório. É em Pietà que acontece o emocionante encontro de Milton Nascimento com Maria Rita, filha de sua amiga Elis Regina. Juntos, cantam “Voa bicho” e “Tristesse”. Milton também legou a Maria Rita a belíssima “Encontros e despedidas”, que estourou na voz da artista.

Em “Tristesse”, dele e de Telo Borges, com Maria Rita, é impossível não pensar em saudade, perda e desejo. “Lembra, lembra, lembra cada instante que passou/ De cada perigo, da audácia, do temor/ Que sobrevivemos, que cobrimos de emoção/ Volta a pensar então/ Sinto, penso, espero, fico tenso toda vez/ Que nos encontramos, nos olhamos sem viver/ Para de fingir que não sou parte do seu mundo/ Volta a pensar então”, cantam.

A voz de Deus se eterniza

Elis Regina teria dito certa vez que, se Deus cantasse, seria com a voz de Milton Nascimento. Podemos dizer, com alguma certeza e emoção, que a voz de Milton certamente é a mais vasta na busca de um lugar para chamar de seu, sem esconder mazelas ou celebrar glórias. Um canto de esperança, por assim dizer.

“Com sol e chuva você sonhava/ Queria ser melhor depois/ Você queria ser o grande herói das estradas/ Tudo que você queria ser/ Sei um segredo/ Você tem medo/ Só pensa agora em voltar/ Não fala mais na bota e do anel de Zapata/ Tudo que você devia ser/ Sem medo”, canta em “Tudo que você podia ser”, de Lô e Márcio Borges. Milton já cantava a vontade de se lançar no cais que inventava para si, sabendo a dor de se lançar, sem medo.

“Pois seja o que vier (seja o que vier)/ Venha o que vier (venha o que vier)/ Qualquer dia, amigo, eu volto/ A te encontrar/ Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar” (“Canção da América”, Milton Nascimento com Fernando Brant. 1979).

Canções como “Paula e Bebeto”, “Fé cega, faca amolada”, “Volver a los diecisiete”, “Gran Circo”, “Maria, Maria”, “Cais”, “O que será (à flor da pele)”, “A lua girou”, “Raça”, “Canção da América”, “Coração de estudante”, “Nos bailes da vida”, “Caçador de mim”, “Noites do sertão” e “Portal da cor” se firmaram no imaginário do universo de Bituca. Ele foi acrescentando a seu repertório uma combinação de letras e parcerias, com grandes compositores, intérpretes e músicos, que forjaram um caminho que se crava na memória e, assim esperamos, na história de nosso país e de seu povo, incluindo seus artistas, a quem tantos Bituca abriu as portas e os caminhos.

Milton cantou o Brasil para todo o mundo, incorporando e reivindicando, a seu jeito mineiro, uma identidade negra latino-americana representada na música internacional

Ao longo da carreira, Milton teve o talento reconhecido com regravações e parcerias artísticas. No Brasil, músicos como Angra, Beto Guedes, Caetano Veloso, Chico Buarque, Clementina de Jesus, Criolo, Elis Regina, Fafá de Belém, Gal Costa, Maria Rita, César Camargo Mariano, Roupa Nova, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Samuel Rosa, Maria Bethânia e Simone são alguns de seus intérpretes e companheiros, além de diversos estrangeiros como Björk, Duran Duran (com quem coescreveu e gravou a faixa “Breath After Breath”, de 1993), Herbie Hancock, Mercedes Sosa, Pat Metheny, Paul Simon, Peter Gabriel, Quincy Jones, Sarah Vaughan e Wayne Shorter.

Milton cantou o Brasil para todo o mundo, incorporando e reivindicando, a seu jeito mineiro, uma identidade negra latino-americana representada na música internacional. Sua grandeza fica registrada pelo rastro do Brasil que alcançou: desde a Maria revelada em sua “força, raça, gana e sonho, sempre” que Milton homenageou a pedido do Grupo Corpo nos anos 70 para o espetáculo de estreia do grupo, ao “Coração de estudante”, que nos lembra a importância da esperança e da vigilância constante para semear o futuro. Ao fim e ao cabo, por mais que falasse de passado, da ancestralidade e do duro presente, Milton sempre foi um artista experimental, ousado e generoso. Cantou mesmo foi a esperança, sempre pensando em um outro amanhã.

“Quero a utopia, quero tudo e mais/ Quero a felicidade dos olhos de um pai/ Quero a alegria muita gente feliz/ Quero que a justiça reine em meu país/ Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/ Quero ser amizade, quero amor, prazer/ Quero nossa cidade sempre ensolarada/ Os meninos e o povo no poder, eu quero ver” (“Coração civil”, Milton Nascimento com Fernando Brant, 1981)

Aplaudimos a despedida de Bituca com a certeza de que a voz de Deus não se despede, se eterniza — justamente em um momento em que o Brasil evoca esperança e segue em busca de não mais cometer o erro de apagar sua história, sua democracia e a liberdade de seu povo.

Quem escreveu esse texto

Guto Alves

Jornalista e produtor cultural.

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.