Literatura,

Moralistas, mas nem tanto

“O pequeno príncipe”, de Saint-Exupéry, mantém a tradição das reflexões breves dos pensadores do século 18, dos quais La Fontaine se tornou o mais conhecido

01jul2017 | Edição #3 jul.2017

Criou-se na tradição literária uma categoria talvez já em desuso: a dos moralistas franceses. A ela pertenceram autores que antepuseram princípios éticos, ou regras para a adoção de bons costumes, à falta generalizada de escrúpulos que, em especial nos séculos 17 e 18, era uma prática comum e benquista para encobrir sob salamaleques e afagos os desmandos, truculências e arrogâncias que imperavam na corte dos Luíses.

O duque de La Rochefoucauld (1613-1680), Jean de La Bruyère (1645-1696), o marquês de Vauvenargues (1715-1747) e Nicolas Chamfort (1740-1794) são os mais destacados desses moralistas franceses, estilisticamente unidos por um traço em comum: a forma áspera e concisa das máximas em que todos redigiram suas lições modelares. “Aprendendo a conhecer os males da Natureza, desprezamos a morte; aprendendo a conhecer os da sociedade, desprezamos a vida”, escreveu, por exemplo, o desabrido Chamfort, “um pessimista experimental”, segundo expressão de Claude Roy. Autor de teimosa independência, ele acabou se matando, tais os desgostos que teve de enfrentar, e nos legou também esta pérola, sempre atual: “Se os macacos tivessem o talento dos papagaios, deles certamente se fariam ministros”.

Originando na própria França e em diferentes países muitas obras análogas, além de um sem-fim de traduções periódicas, o brilho dissonante dos moralistas de Paris repercutiu com longo vigor até meados do século 20, quando a influência antes universal da língua francesa começou a ser desbancada pelo inglês como meio dominante de expressão literária.

O corte lapidar das máximas tem geralmente um forte cunho satírico, que parte da observação dos comportamentos mundanos para ridicularizar os caprichos com que a pompa dos nobres se exibia. Certa incompletude de sentido também se nota por norma no texto das moralidades enxutas, como se a intenção fundamental dos autores, nesses casos, fosse apenas atingir o leitor com uma estocada ligeira, levando-o a refletir mais a fundo sobre as consequências do escrito, ou do raspão do golpe. Esse antigo e incipiente vislumbre de obra aberta pode ser ilustrado por uma simples passagem de La Bruyère: “O homem tem bem poucos recursos em si mesmo, já que é preciso uma desgraça ou uma mortificação para torná-lo mais humano, mais tratável, menos feroz, mais civilizado”.

No quarto século após o reinado de Luís 14, quando os primeiros moralistas fizeram muito sucesso, só um deles resiste ao ostracismo que atingiu os demais: o fabuloso fabulista Jean de La Fontaine (1621-1695). Até hoje seu nome é conhecido no mundo, sendo a parte mais saboreada de sua obra extensíssima as fábulas educativas em versos, continuamente traduzidas e reimpressas numa impressionante quantidade de línguas.

Homem inquieto como poucos, sempre a mudar de residência ou de bares, Saint-Exupéry não tinha a paciência de monge que em geral se requer de um escritor

La Fontaine escreveu vários textos longos e de inclinação palavrosa, como Os amores de Psique e Cupido, no qual o entremesclar de prosa e versos forma uma tessitura tão preciosa quanto outras tantas oriundas da mesma época. Apesar disso, foi incisivo ao defender por escrito o valor das reflexões breves e inconclusas que dependem da participação do leitor para a construção real do sentido. Em seu Discurso ao senhor duque de La Rochefoucauld, poema de teorização literária que ele no entanto incluiu entre as fábulas, La Fontaine nos diz sobre a questão: “Mas as obras mais curtas são / Sempre as melhores. E, tendo eu nisso por guias / Todos os mestres da arte, acho que é bom deixar / Nos mais belos temas algo no que pensar”.

Se muitos outros escritores franceses do passado foram tidos também por moralistas, sobretudo em seu país, somente no começo do século 20 surgiu de brusco um novo autor que se pode colocar junto de La Fontaine, pela repercussão mundial de suas respectivas obras, como um mantenedor da tradição: Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Esse caráter do criador de O pequeno príncipe foi aliás posto em relevo pelo que talvez tenha sido o primeiro dos vários livros depois escritos sobre ele: Antoine de Saint-Exupéry: poeta, romancista, moralista, de Daniel Anet. Publicado em 1946 pelas Éditions Corrêa, firma fundada e dirigida em Paris pelo brasileiro Roberto Alvim Corrêa, esse livro repete o moralista da capa em sucessivas passagens do miolo, prevendo, em sua última página, que a obra do autor e aviador “finalmente será associada à família dos moralistas”.

Uma busca na internet demonstra que a previsão de Anet se cumpriu. São inúmeros e multilíngues os sites hoje compostos por seleções de frases, ou máximas moralizantes, tiradas de O pequeno príncipe e também dos livros em que Saint-Ex, como o chamavam seus colegas de trabalho e como a ele continuam se referindo habitualmente na França, narrou a saga dos primórdios da aviação.

Homem inquieto como poucos, sempre a mudar de residência ou de bares e nunca se fixando de vez num de seus muitos amores, Saint-Ex causa a impressão, pelos relatos que dele nos fizeram, de que não tinha a paciência de monge que em geral se requer de um escritor. Editoras ou jornais que lhe encomendavam trabalhos viviam atormentados por sua enorme displicência em escrever dentro dos prazos previstos. Para o homenzarrão que ele era, e só a custo se encaixava na carlinga dos primeiros aviõezinhos que pilotou, a mais absoluta liberdade parece ter sido indispensável. Compreende-se pois que ele a buscasse, por um lado, na intrepidez com que singrava entre as nuvens e, por outro, na ligeireza telegráfica do estilo que sedimentou no prazer de seus livros curtos e fortes.

La Fontaine e Saint-Exupéry enalteciam por escrito as virtudes, mas procediam como indisciplinados boêmios

“Não há senão um luxo verdadeiro, e este é o das relações humanas.” São frases assim, com típica e lacônica inflexão de aforismo, que foram extraídas da prosa de Saint-Exupéry para popularizá-lo cada vez mais pela internet. Tudo indica que seu próprio temperamento agitado, um ponto que diferentes biógrafos ressaltam com idêntica constância, o tenha arremessado àquela senda, a da brevidade em aberto, que La Fontaine aconselha em seu discurso a La Rochefoucauld. Tanto o mestre das fábulas quanto o ás da aviação são vezeiros em deixar para o leitor em seus temas “algo no que pensar”. O primeiro, ao narrar infortúnios da esperteza, quando dois malandros se apavoram com um urso que planejavam matar e esfolar para vender-lhe a pele, resume os erros da ganância numa lição que virou lugar-comum: “Jamais se deve contar com o ovo que a galinha ainda há de pôr”.

Aproximados pelo espírito dos textos que escreveram, La Fontaine e Saint-Exupéry aproximam-se igualmente pelo teor das vidas que levaram. Ambos foram casados, mas nunca se privaram de manter namoros por fora. Nenhum dos dois seguia regras estritas, procedendo em vez disso como indisciplinados boêmios que se agarravam às oportunidades do dia, sempre em função das circunstâncias. Se enalteciam por escrito as virtudes, eram homens que não se controlavam quanto às fraquezas do sangue: passavam horas indolentes cortejando mulheres, gostavam de beber e apreciavam as noitadas alegres, com inclinações à jogatina.

Os amores de Psique e Cupido, de La Fontaine, traz no final um poema que passou a ser conhecido, embora não tivesse título, como “Hino à volúpia”. Dois versos desse poema, já muito comentados em relação às libertinagens do autor, bem poderiam se alargar de espectro para servir como divisa à dupla, sendo melhor citá-los, para manter o sabor, no original: J’aime le jeu, l’amour, les livres, la musique, / La ville et la campagne, enfin tout…

Biógrafos dos dois escritores aplicaram a um e a outro o mesmo adjetivo étourdi, que se traduz por desatento, desligado, estouvado ou imprudente (uma francesa radicada no Brasil propõe usar “sem noção”). É sobretudo na maneira de lidar com o dinheiro que se percebe a étourderie da qual talvez compartilhem. Gastando mais do que podiam, ambos foram forçados a recorrer muitas vezes a parentes e amigos, pedindo empréstimos vultosos para se livrar de enrascadas. La Fontaine nasceu rico, mas morreu pobre, e há fortes evidências de que foi em mesas de jogo que seu capital se esvaiu. Ele já era um cinquentão aclamado por seu talento satírico quando não teve alternativa, ao se ver sem teto em Paris, a não ser ir morar com uma amiga de posses, madame de La Sablière, divorciada e bem mais nova, em cuja casa viveu quase vinte anos.

Saint-Exupéry, por sua vez, gastou a rodo em carros de luxo, como “o Bugatti que dirigia como um louco”, segundo afirma seu biógrafo e grande admirador Patrick Poivre d’Arvor. Do mesmo modo dissipado, passando grande parte do tempo em restaurantes e bares, onde não raro se instalava para escrever seus trabalhos, torrava ganhos e empréstimos em refeições principescas com caviar e champanhe.

Outra semelhança curiosa se nota na evolução das carreiras desses moralistas excêntricos. Além das fábulas, graças às quais se imortalizou, La Fontaine escreveu também, sempre em versos, grande quantidade de contos eróticos, ou licenciosos, como então se dizia, que foram suas senhas de entrada para o sucesso que ele fez ainda em vida. Um pouco à moda dos fabliaux medievais dos séculos 12 e 13, e em geral baseados em temas provenientes de fontes anteriores, tal como ocorreu com as fábulas, esses contos se concentram em amores ilícitos, tendo freiras, padres, virgens ou pessoas casadas como personagens frequentes nos enredos concebidos para debochar das normas. No fim da vida, já pertencendo à Academia Francesa e reconciliado com a Igreja, La Fontaine repudiou esses contos. Seria no entanto de esperar que seus produtos malditos, afinal preteridos pela ingenuidade das fábulas, fossem os de maior influência para torná-lo lembrado no futuro. Lidos agora, os contos licenciosos ainda mantêm sua graça, mas é verdade que também soam ingênuos, se forem comparados às pornografias de hoje.

Excêntricos no comportamento e avessos a convenções transitórias, esses moralistas da arte têm feito o mundo sorrir

Do mesmo modo, os primeiros livros de Saint-Exupéry, como Voo noturno (1931) e Terra dos homens (1939), ambos premiados pouco depois do lançamento, deram-lhe os momentos de glória e os ganhos consideráveis que lhe permitiram viver em grande estilo. Toda a celebridade que ele pôde auferir decorre dos livros sobre aviação. Só em 1942, quando estava morando em Nova York, para onde foi durante a Segunda Guerra, após se consumar a ocupação da França pelos alemães, Saint-Exupéry recebeu de sua editora americana, a Reynal & Hitchcock, a proposta de escrever um livro para crianças. Assim nasceu O pequeno príncipe, publicado primeiramente em inglês, no início de 1943, e cujo avassalador sucesso o autor nem sequer acompanhou, já que morreu no ano seguinte.

O biógrafo Patrick Poivre d’Arvor nos garantia, no final de 2016, que esse não só era o livro francês mais lido em outros países, como também “o livro mais vendido no mundo”, circulando àquela altura “em mais de 150 línguas e dialetos”. Ao mesmo tempo, o interesse pelos títulos da saga da aviação vai decrescendo em ritmo vertiginoso, à medida que os aviõezinhos da Aéropostale, em face das aeronaves modernas, tornam-se itens tão lendários quanto as carroças de mulas ou as caravelas antigas.

La Fontaine e Saint-Exupéry aproximam-se enfim por este fato — o de serem supremamente consagrados e permanecerem ativos pelas obras menos ambiciosas que escreveram. Excêntricos no comportamento, avessos a leis que são transitórias, indiferentes às convenções tão mutáveis, esses moralistas da arte têm feito o mundo sorrir, tal como o grande Molière, moralista do palco, para poder se entender. Não são conversas para boi dormir o que encontramos nas fábulas com animais falantes ou nas tiradas jocosas do Pequeno príncipe. O que perdura e deve penetrar nas cabeças, nos dois casos, é a corrosão da sátira ostensiva contra as maneiras tortuosas como a sociedade se organiza e opera.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Fróes

É autor de Trilhas: poemas 1968-2015 (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.