Literatura,

Alvos móveis e margens rompidas

Livros reúnem análises literárias e bastidores dos processos criativos de Elena Ferrante e Margaret Atwood

24fev2023 | Edição #67

Quando a versão televisiva de O conto da aia estreou nos Estados Unidos, em abril de 2017, o mundo via o estouro do movimento #MeToo. O ativismo de hashtag ganhou impulso nas redes sociais ao denunciar a prática generalizada de agressão sexual e assédio, especialmente no local de trabalho. O caso mais emblemático dessa onda de empoderamento feminino foi o das acusações que eclodiram contra o produtor Harvey Weinstein, hoje preso.

Foi como se os astros de Hollywood convergissem para que a história publicada pela escritora canadense Margaret Atwood em 1985 entrasse na casa dos norte-americanos e virasse, na sequência, um sucesso ao redor do planeta. O conto da aia fala justamente de como, em um futuro distópico, um teonomia totalitária fundamentalista derruba o governo dos Estados Unidos para instaurar uma ditadura com base na subjugação da mulher.

Mas 2017 foi ainda o ano em que o livro Um amor incômodo, de Elena Ferrante, chegou ao Brasil, com uma mistura de gêneros tão comum à autora, que retratou na obra uma personagem com um passado assombrado pelas figuras soturnas de três homens agressivos, morta em circunstâncias suspeitas.

  
As margens e o ditado, de Elena Ferrante, e Alvos em movimento, de Margaret Atwood

Passados cinco anos, após o #MeToo ajudar a reconfigurar a forma como a imprensa e a sociedade tratam histórias de poder e abuso sexual, são lançados As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever, de Ferrante, e Alvos em movimento: uma coletânea de trajetórias (1982-2004), de Atwood. Os livros denunciam as dificuldades da escrita feminina em uma área que ainda congratula majoritariamente homens: eles ganharam mais de cem edições do Nobel de Literatura, enquanto elas, menos de vinte.

As margens e o ditado é de autoria de uma mente criativa conhecida por assinar best-sellers mundiais, como os romances conhecidos como a tetralogia napolitana, mas cuja identidade permanece desconhecida até hoje — a teoria mais difundida é de que Elena Ferrante seja o pseudônimo de uma tradutora italiana. O livro reúne três palestras, escritas originalmente para as Umberto Eco Lectures, ocorridas em 2021 em Bolonha, e um ensaio composto para o encerramento da Conferência de Italianistas sobre Dante Alighieri e demais clássicos. Neles, Ferrante expõe como a tradição literária há muito excluiu a voz das mulheres a partir de reflexões sobre o trabalho de Emily Dickinson, Gertrude Stein, Ingeborg Bachmann e outras.

Os homens ganharam mais de cem edições do Nobel de Literatura; as mulheres, menos de vinte

Uma remissão ao título da obra, o dilema da literatura estaria em romper as margens, equilibrando seu gosto por limites e organização e seu desejo por desordem e clamor. Assim, a autora explica que a tetralogia napolitana e A vida mentirosa dos adultos teriam em seu centro o ato de narrar-se e a narração das mulheres. Essa história da escrita seria inclusive o fio que mantém unido todo o “encontro-confronto” de Lenù e Lila, da famosa tetralogia. A primeira pessoa feminina retira do armazém da expressão literária abalos, saltos e imprevistos a partir dos quais gera o texto e, ao mesmo tempo, a si mesma.

O livro ainda fornece curiosidades sobre a vida da autora, que conta da fixação pelo anel água-marinha da mãe, cor que dá nome a um dos capítulos, da existência de duas irmãs “que brigavam no pátio” e da sua concepção de “vida interior” como “um lampejar permanente do cérebro que quer se materializar sob a forma de voz, de escrita”.

E, é claro, revela-se uma mulher, contrariando teorias de que seria na verdade do sexo oposto. “Se eu queria ter a impressão de escrever bem, devia escrever como um homem, mantendo-me firmemente dentro da tradição masculina; mas, sendo mulher, eu só podia escrever como mulher se violasse o que estava procurando diligentemente aprender na tradição masculina”, escreve.

Nos quatro textos inéditos do volume, o conhecimento de Ferrante sobre teoria literária envolve o leitor e se mostra tão qualificado quanto a prosa com a qual conquistou o público e a crítica. Se não fosse uma ghost-writer, poderia muito bem estar dando aulas nas principais universidades do mundo. É assim também que se mostra Margaret Atwood em Alvos em movimento. Os textos reunidos no livro foram publicados entre 1982 e 2004 e são de natureza diversa: ensaios, críticas, prefácios, manifestos, recordações e devaneios. Mas todos contêm o olhar analítico que fez de Atwood, além de grande romancista, uma crítica acurada. Principalmente no que versa sobre suas influências femininas.

Em um dos textos que mais se sobressai no livro, a autora fala sobre o quinto romance de Toni Morrison, Amada. Baseada em uma história real, a obra é a mais conhecida da autora norte-americana — Prêmio Nobel de Literatura em 1993 — e trata, de forma não linear, de uma ex-escravizada e da cruel condição do negro no fim do século 19 nos Estados Unidos. Ao analisar a complexidade da narrativa, Atwood relaciona o caráter sobrenatural do enredo ao fantasma de Catherine Earnshaw em O morro dos ventos uivantes, da britânica Emily Brontë.

Arte de bruxa

Uma relação variada de mulheres através dos séculos e civilizações é levantada também quando Atwood se debruça sobre The Warrior Queens (As rainhas guerreiras, ainda sem tradução para o português), um panorama histórico traçado pela biógrafa e escritora britânica Antonia Fraser. Ela parte de Zenóbia, a rainha de Palmira no século 3 que desafiou o governo de Roma; passa pela imperatriz Matilde, das guerras de sucessão inglesas do século 7; e chega a Elizabeth 1ª, que inspirou seus soldados a combaterem a armada espanhola.

O conhecimento literário de Ferrante é tão qualificado quanto a prosa com que conquistou o público

Recomendado como obra essencial para qualquer mulher que “vá fazer qualquer coisa”, The Warrior Queens se revela para Atwood como Emily Dickson é citada por Ferrante, que apresenta um poema de Dickson sobre história e bruxas: “Na História, bruxas foram enforcadas/ porém eu e a História/ temos toda a bruxaria de que precisamos/ todo dia entre nós”. Esses versos foram justamente a inspiração de Ferrante para escrever a tetralogia napolitana, já que viu na obra de Dickson a figura de uma mulher que se senta à mesa e escreve como um desafio, quase um acerto de contas. Não à toa essa temática é retomada por Atwood na análise que faz de As bruxas de Eastwick, de John Updike, homem que ousa levantar a temática da sororidade por meio de feiticeiras inquietas e entediadas que fazem truques maldosos e seduzem homens em casamentos infelizes.

Embora não façam referência literal a movimentos como o #MeToo, As margens e o ditado e Alvos em movimento são leituras obrigatórias em tempos de crescente empoderamento feminino não só por tratarem da reunião de textos escritos por duas mulheres, mas pelas referências que carregam, que vão do cânone da literatura a rainhas, guerreiras e políticas. É como Ferrante escreve ao analisar A autobiografia de Alice Toklas, da norte-americana Gertrude Stein: “Ela pega um gênero extremamente estruturado como a biografia e o deforma. Essa é a sua diversidade, e talvez Dickinson dissesse: essa é a sua arte de bruxa”.

Quem escreveu esse texto

Vivian Masutti

Jornalista, é editora-assistente da Folha de S. Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.