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Vamos comer o Brasil

Em banquete de personagens e histórias tão bem construídas quanto divertidas, Odorico Leal serve um país sangrento e ridículo

01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dez
O escritor piauiense Odorico Leal (Divulgação)

Se pudesse ver o que fez Odorico Leal no conto que abre Nostalgias canibais, Bram Stoker ficaria com ciúmes, inveja, talvez até mesmo ressentido. Enquanto o autor de Drácula oferece ao leitor apenas um pescocinho, carne de segunda, Leal dá um banquete com o seu indígena antropofágico. 

Como um vampiro, o personagem de “Paraíso canibal” sofre de imortalidade. Nosso Orlando tropical e originário também atravessa séculos e costumes, encontra personalidades, modas, guerras, novidades e troca de pele, nunca deixando de comer a dos outros. Nesse desdobramento e cronologia, a linguagem acompanha, fazendo desse um conto deslumbrante estética e estruturalmente, além de hilariante.

Mas enquanto o Drácula de Bram Stoker e o Orlando de Virginia Woolf, em sua seriedade gótica e existencial, respectivamente, não têm quase divertimento algum, “Paraíso canibal” é um sopro fresco na vertente sisuda da literatura contemporânea, com a vantagem de não ter parentesco com a literatura do eu que pode gerar no leitor um pouco cansado uma súbita vontade de olhar o céu e sentir soprar lá fora a voz do mundo que não é a íntima. Estamos diante de um emaranhado sofisticado de sagacidade e inteligência, o que geralmente resulta em humor dos mais refinados.

Tais predicados não se esgotam no primeiro conto. Ao contrário: Nostalgias canibais traz uma rara característica num livro de contos que é a de manter uma qualidade constante. É comum e até esperado que, num livro de textos curtos, um ou dois estejam ali para destacar ainda mais os fortes e excelentes. Aqui, é difícil selecionar os contos protagonistas, os coadjuvantes e os figurantes, o que nos faz refletir sobre a habilidade do autor de desenvolver artifícios e mecanismos para chegar a uma coletânea tão coesa. 

Evidentemente, existe uma linguagem afiada que desliza em construções comedidamente divertidas. Quando digo “comedidamente divertidas” não me refiro a uma escrita tímida com toques de humor, mas a uma narrativa que não impõe, não explica e nem justifica o riso que escapa franco na leitura. Ou seja, não são os narradores que riem, são os leitores que encontram no texto a inteligência do fino humor. Como se fossem feitos num tom inglês de rir com a boca fechada, mas com a vantagem de serem contos brasileiríssimos.

Leal escreve um livro político sem obviedade que nos faz esconder o riso da nossa própria vilania e azar

Um aspecto luminoso que acompanha o primeiro conto/novela é o seu estudo sobre o brasileiro e o Brasil. Talvez o autor tenha estado, em algum momento, obcecado pela frase “O Brasil não é para principiantes” e, a partir dela, presenteou seus leitores com essa personagem que, pensando bem, já não causaria ciúmes ou inveja em Bram Stoker, mas em Mário de Andrade. Nosso heroi é um vilão comedor de carne humana, condenado a testemunhar a história do Brasil através dos séculos. Eçaraia, cujo nome em tupi supostamente significa “esquecimento”, carrega na memória seus banquetes canibais, consciente de que sua imortalidade o leva a atos dos mais levianos, jantando os amigos ao mesmo tempo que se recorda deles, séculos ou décadas depois, com comovente ternura. Nosso herói que é nosso vilão vai, com o passar do tempo, deixando sua inocência e adquirindo algum cinismo, diálogo e metáfora perfeitos para a contradição de um povo que acredita ter dado a Deus sua nacionalidade, mas que entre 2019 a 2022, por exemplo, abriu a porta de casa para o demônio jantar.

Odorico Leal escreve um livro político sem qualquer obviedade e que nos faz afundar a cabeça envergonhados só para esconder o riso da nossa própria vilania e azar. Uma sátira sobre a safadeza desse povo, safo e safado, que bem poderia iluminar as aulas de história do país. Mas por não ser didático, “Paraíso canibal” talvez seja, como Padre Mundim, Oliveira e Ernesto, devorado por explicações mais mastigadas.

Daí a pouco eu andava com Padre Mundim, oriundo do Arcebispado de Évora, que me falava dos meus pecados. Sempre que dizia sangue de Cristo me botava água na boca. Cedo tomei gosto pelo seu idioma, e nele eu solicitava que me descrevesse de novo, com riqueza de detalhes, a Paixão. O bom padre repetia tudo: a carne estraçalhada, a coroa de espinhos, as chagas abertas. A carniçaria era sempre maior, pois me queria temeroso e impressionado, mas eu só lambia os beiços e media sua cintura.

A passagem acima, que abre o conto, propõe uma aproximação com o Calibã shakespeariano, retirado das leituras de Dos canibais, de Montaigne. Como em A tempestade, “Paraíso canibal” traz a composição do selvagem inocente, mas cuja selvageria não deixa de ser pejorativa porque tem a sua história registrada por quem sabe escrevê-la. Se por um lado a ambiguidade dos atos inerentes — em A tempestade resulta na tentativa de estupro e em “Paraíso canibal” na antropofagia — compõem o indígena que não é bom e nem é mau, o selvagem, por sua vez, torna-se bem sucedido porque aprende, com fluência e velocidade, a língua dos “colonizadores”, tornando-se, então, tão sujo, baixo e civilizado quanto eles.

É interessante, no recurso da passagem do tempo, a atenção às inúmeras ironias sugeridas pelo autor. Não é de se surpreender que o narrador canibal chegue ao século 20 rodeado de artistas, mas com menos fome. Ficamos com a impressão de que é o período que menos o apetece, o que é compreensível: a vida artística e cultural pode ser mesmo bastante indigesta.

Perspicácia literária

É uma missão de escalada íngreme e tortuosa a de provocar riso num texto literário. Um dos elementos que chama a atenção em Nostalgias canibais é que não é apesar de ser um livro divertido que é refinado. Ao contrário, é por ser divertido que é refinado. Ariano Suassuna, Machado de Assis, Lima Barreto, Oswald de Andrade poderiam ter sido fontes de inspiração para Odorico Leal. Ainda assim, o texto traz uma personalidade literária muito própria que se dá pela perspicácia, não só na estrutura narrativa, mas nos temas escolhidos. 

O risco é sempre a proposta da piada. O leitor pode não entender, não achar graça, ignorar. Além desse risco, que se fundamenta na ideia tão íntima e diversa do humor, há uma lista oculta de referências literárias, culturais e políticas à disposição de quem lê, compondo um retrato do próprio país, ora borrado, ora colorido, mas que, acima de tudo, expõe a selvageria ambígua do Brasil como piada interna.

Na peça Freshwater, de Virginia Woolf, o artista traído George Frederic Watts pergunta para o amante da mulher onde eles pretendem viver. Ao responder WC1, Watts se choca não só pela resposta, mas pela falta de decoro já que, segundo ele, há moças no recinto. A piada não fica só em torno da sigla para banheiro (water closet), mas do fato de Bloomsbury, que fica em WC (West Central), Londres, ter sido considerado um bairro insalubre e imoral, ou seja, o banheiro do mundo — na falta de uma palavrinha menor de duas letras para acompanhar “do mundo”. É esse privilégio de rir do que ninguém falou que alimenta a sagacidade do texto de Leal, tradutor de Frederick Douglass e Toni Morrison.

Esse recurso textual enriquecedor é visto, por exemplo, em seu divertidamente sombrio conto “Os gatos”, que traz os felinos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos analisando a própria existência e privilégio de morar num andar alto, num apartamento cuja inquilina inadimplente coloca em risco o paraíso que, para Alberto, se caracteriza na maior distância possível com o Brasil, esse inferno que ele conseguiu evitar por ter sido, como Álvaro, resgatado das ruas. Os diálogos divertidíssimos entre os dois sugerem algumas sutilezas próprias dos heterônimos de Fernando Pessoa, com a sensibilidade caeiriana contrapondo-se à frustração e frieza de Álvaro de Campos.

— Andressa é uma demente.

— Não fale assim, Álvaro.

— Mas é. Claro que é. Pôs tudo a perder.

— O acaso rege os homens, Álvaro.

— O acaso aqui não foi de acaso, Alberto. Foi um longo fio de escolhas ruins, as escolhas de uma idiota.

— Carlos, por exemplo — concedeu Alberto.

— Sim, Carlos.

Em “A febre dioneia”, temos, entre reflexões sobre a polarização política tão velha quanto nosso canibal do primeiro conto, a figura decadente do escritor ressentido. Ainda que eu tenha sentido falta de predicados como professor de escrita criativa, Eduardo Aguardi traz o escárnio irresistível para a figura literária irrelevante, devorada pelos novos tempos e seus autores. Para rir de Aguardi, temos como cúmplice a jornalista narradora do conto que na sua indecência e petulância de ir entrevistar um escritor cujo livro desconhece, nos transporta para a intimidade das suas observações, chacota e ironia enquanto tenta se safar da obscenidade de não ter lido o livro do autor, ao mesmo tempo que concatena maneiras de fazê-lo responder aos seus reptos de forma extensiva o suficiente para que resulte numa matéria.

Uma coletânea em que as personagens não morrem, mas todas, sem exceção, devoram e são devoradas

Numa passagem, o escritor inseguro, essa redundância, pergunta à jornalista sobre o livro que ela não leu:

—Então você gostou de Como o Brasil?

Desprevenida, tremo. Depois me emputeço: que importa se gostei ou não gostei? Não faço crítica literária. Devia ter dito desde o início que não li. Mil perdões, não li. Simples. Aguardei que se remoesse. Pra que mentir? É o Brasil dentro de mim. Improvisando no escuro. Busco uma tangente. Penso no tio. Digo:

— Gostei, gostei. Mas essa história do seu tio getulista, a rixa com o cunhado liberal… Isso também dá um romance, não?

O aspecto mais atraente desse conto me parece ultrapassar a temática para se firmar na construção de dois cretinos e cínicos que são a jornalista e o escritor. Enquanto Eduardo Aguardi deixa escorrer a baba amarga da acidez nos pequenos discursos que faz para a jovem jornalista, ela mesma mergulha em uma breve divagação sobre o namorado fracassado, iluminando seus pensamentos mais avinagrados e cômicos:

E penso que tudo que clama por ajuda merece morrer: o teatro deve morrer, os artistas devem morrer, os museus, os cinemas de rua, a ararinha-azul, as tartarugas gigantes, a Amazônia, os índios kaiowá, tudo deve simplesmente aceitar que não pertence a este mundo, não só não pertence a este mundo como é repelido por ele.

Ainda que eu já previsse o desfecho do conto logo no meio, não deixamos de ler Romeu e Julieta sabendo que os dois vão morrer. A questão aqui é que os elementos de linguagem, o sarcasmo, as imagens e as personagens são tão bem construídos que é um prazer chegar ao final e pensar: eu sabia.

Nostalgias canibais é um feito. Uma coletânea composta de cinco grandes contos e que tem a generosidade de contar ótimas histórias e só. Um livro onde as personagens não morrem, de maneira sempre evidente, mas todas, sem exceção, devoram e são devoradas, numa ilustração das mais ricas e intrincadas do povo brasileiro. Nessa espécie de livre narração literária da pátria louca, é menos sobre despir o eu e mergulhar nas próprias entranhas, e mais sobre despir o outro e se refestelar nos seus bofes. 

Quem escreveu esse texto

Nara Vidal

Escritora, é autora de Mapas para desaparecer (Faria e Silva), Eva (Todavia) e Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare (Relicário).

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Vamos comer o Brasil”

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