Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Bonito na foto

A diferença entre filmar um documentário com e sem filtro nos centros de detenção do estado de São Paulo

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

Dirigi uma série de tv sobre o sistema carcerário, Eu, preso, de oito episódios, produzida pela Mira Filmes com financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e que foi ao ar em 2019 no Canal Curta!. Hoje, quando assisto a ela, reparo como é “limpa”, asséptica, bem-acabada. Escolhi fazer planos fixos e abertos e, para tanto, tinha ao meu lado um diretor de fotografia parceiro de longa data, o Diego Lajst, que desenvolveu um trabalho impecável com a luz. Esse detalhe é da maior importância porque, para além do formato dos episódios, a série é toda pensada esteticamente em cada um dos frames

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Para entrar nas unidades prisionais, de penitenciárias a centros de detenção provisória (os CDPs), percorri todas as instâncias de autorização: a assessoria de imprensa da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), a direção da unidade prisional e um juiz ou juíza da Vara de Execuções Penais. Além das três autorizações necessárias, um filtro pesado ainda recaía sobre as entrevistas. Solicitava um perfil de preso (homem ou mulher, idade, se era mãe ou não, crime cometido etc.), porém jamais tive condições de conversar com várias pessoas para, depois, escolher quem filmaria. No dia e horário marcados, eu começava a rodar a câmera ao mesmo tempo em que conhecia o entrevistado. Quem trabalha com documentário sabe: o personagem é a alma do filme, e não poder conversar previamente com a pessoa pode complicar o processo.

Nas unidades prisionais da cidade de São Paulo, salvo rarass exceções, os internos nos recebem na biblioteca ou na sala de aula. Imagens de pavilhões, celas, corredores, pátios ou grades permanecem fora do nosso alcance. É proibido. Há interdições de filmar isto ou aquilo, nunca apontar a câmera para os muros etc.

Um funcionário da assessoria da sap e outro da unidade prisional sempre acompanhavam a entrevista do início ao fim. Como alguém poderia reclamar da unidade diante dessas pessoas? Em uma das únicas exceções em que não filmei na biblioteca, conversei com mulheres nas celas da ala materno-infantil da Penitenciária Feminina da Capital (PFC), o local “mais arrumado” disponível. Como não cabíamos todas lá dentro, a produtora da equipe foi obrigada a retirar-se da cela para que a assessora da sap pudesse estar presente. A presa que mais se abriu respondeu à minha pergunta “como é estar aqui?” com um “it’s like hell” (é um inferno). Falava inglês, então podia ser mais franca, pois as carcereiras não entendiam a língua. Carmen (pseudônimo para preservar sua identidade) é da África do Sul e cumpre pena por tráfico de drogas. 

Millena, outra entrevistada, ganhou brincos, batom e cachecol da carcereira, que foi “arrumando” a presa sem lhe pedir permissão: “Assim você fica mais ajeitadinha, bandida”. Lenços e bijuterias não são permitidos dentro das unidades. Um levantamento do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo mostrou que 59,2% dos internos afirmaram não dispor de vestimenta adequada para as variações de temperatura. A maioria passa frio. O cachecol na cena? Pura ficção.

Lucélia, outra personagem da série, agora egressa e habitante de uma ocupação no centro da cidade, conta que até hoje acorda durante a noite lembrando as baratas que passavam por cima de seu corpo enquanto dormia no “barraco” — como são chamadas as celas — da cadeia onde cumpriu pena no Ceará.

Ainda na PFC, ao voltar as lentes em direção a uma grade do pátio com roupinhas de bebê secando ao sol, a carcereira avisou: “Sem filmar aquilo lá, se não vão achar que isto aqui é favela”. A imagem entrou no primeiro episódio sobre mães, pois demos um jeito de captá-la num lapso de distração das nossas carrascas. Tivemos que lutar por cada detalhe que transmitisse um pouco da realidade local. Por dentro, a cadeia não é tão bonita como na série. Sem um tratamento de cor na pós-produção ou um cuidado com a luz natural, ela pode ficar feia na foto.

Mais íntimo

Por sua vez, Julia Hannud e Catharina Scarpellini, diretoras do longa documental Saudade mundão, tiveram outro tipo de acesso a uma prisão. Elas terminavam a faculdade de cinema e, não conseguindo permissão para entrar nas unidades da capital paulista, saíram pelo interior em busca de uma alternativa. Decidiram tentar a Cadeia Pública de Franca. Depois de mais de quatrocentros quilômetros de estrada, tocaram a campainha — literalmente — e pediram para falar com o diretor da unidade. 

Ele as recebeu numa sala, onde elas explicaram a ideia do trabalho de conclusão de curso, que era, a princípio, sobre o quanto a arquitetura influenciava ou não a ressocialização dos presos. Impressionado, o diretor perguntou se elas de fato acreditavam naquilo. “Essas pessoas nunca tiveram direitos na vida, não é aqui dentro que vão ter. E como falar em ressocialização de alguém que é arrancado da sociedade?”. Acrescentou que ali era um espaço que aceitava visitas e projetos, desde que as próprias presas autorizassem. 

Um carcereiro levou-as para perto dos pavilhões e chamou uma detenta no portão, que permitiu a entrada. Do lado de lá, foram trancadas ali dentro, com as presas e sem nenhum funcionário. “As universitárias estão no prédio”, anunciava a presa às demais. Fizeram uma roda de conversa com dez das 142 “internas”. Estavam dispostas a colaborar, mas, antes, pediriam autorização para os “irmãos” do Primeiro Comando da Capital (PCC). 

Julia e Catharina voltaram dias depois. O delegado-diretor deu-lhes uma carteirinha para que tivessem livre acesso ao prédio, a qualquer dia ou horário. Passaram um mês ali, entrando e saindo, filmando as cenas mais íntimas. Visitaram cada canto, cada cela, e se aproximaram de Nina, Léia, Coringa, Sandra e Elisabete. 

Captaram os ratos zanzando ao lado das camas, as detentas cozinhando em suas celas com cebolas cobertas de moscas, aprontando-se para os dias de visita, em meio a toda a sujeira e precariedade. Paredes sujas, descascadas, câmera na mão, guerrilha, filme sem financiamento do fsa, sem uma produtora e um canal exibidor. As diretoras chegaram a deixar uma câmera com as presas por um tempo. As imagens saíram tremidas, o som sujo. Tecnicamente, o filme é imperfeito. Mas é real e íntimo.

Saudade mundão, ganhador de um edital de distribuição da Spcine, deve estrear neste ano. É um filme que precisa ser visto. O material é único e o acesso, inacreditável. Além disso, a Cadeia Pública de Franca foi desativada no mesmo ano da filmagem, em 2016. Elas não teriam, assim, nenhum tipo de questão jurídica pela falta das autorizações necessárias.

Assim como o filme de Julia e Catharina, as imagens dos relatórios das inspeções que a Defensoria Pública faz nos presídios do estado são terríveis. Celas sem luz, úmidas, com infiltrações e mofo no teto e nas paredes. Resto de água no chão, camas improvisadas junto às privadas sem descarga, presos com machucados infectados, roupas rasgadas, sarna e outras doenças de pele, além de tuberculose. Sem falar na superlotação. Faltam água, sabonete e escova de dente; qualquer item básico de higiene pessoal que deveria ser disponibilizado pelo poder público acaba sendo entregue pelos familiares em dia de visita. 

O coronavírus pode funcionar como ferramenta de extermínio da população que ninguém quer ver

Segundo o mesmo relatório, em 70% das unidades do estado há racionamento de água, em 91% não há água quente para banho, e os presos não recebem sabonete em 69% desses locais. Sendo essa a realidade, o que não vemos, o que pode acontecer com a chegada de um vírus tão violento como o corona, que anda nos rondando? Dizem todos os alertas de prevenção: “Lave bem suas mãos”. Como fazê-lo sem água e sem sabonete?

O que gostariam que víssemos, um ambiente limpo e arrumado, não é a realidade na maior parte das unidades prisionais. Muito pelo contrário: na terra do “bandido bom é bandido morto”, com a terceira maior população carcerária do planeta, a chegada do coronavírus pode funcionar como uma ferramenta de extermínio dessa população que ninguém quer ver.

Não se enganem com as imagens dos presos nas salas de aula, pouco mais de 10% são os que estudam. A grande maioria passa boa parte do dia em celas com pelo menos o dobro de pessoas além da sua capacidade. No estado de exceção da pandemia, a disciplina sobre os corpos vira necropolítica. O Estado, que deveria garantir a preservação da vida, pode deixar que um genocídio aconteça.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Paula Sacchetta

É documentarista.

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.