Trechos,

Carta à irmã morta

Em ‘A outra filha’, Annie Ernaux elabora o trauma de ter descoberto, aos dez anos, um segredo nunca revelado pelos pais; leia trecho

08ago2023 | Edição #72

No verão de 1950, quando tinha dez anos, Annie Ernaux escutou uma conversa da mãe com uma cliente do café da família. Quase sussurrando, a mãe conta que os pais tiveram uma outra filha, morta aos seis anos de difteria. Relata ainda que decidiram não contar nada à pequena Annie para não deixá-la triste, e que a outra filha “era mais boazinha do que aquela ali”.

Em A outra filha, sétimo livro da ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 2022 lançado pela editora Fósforo, Ernaux parte desse episódio para elaborar, com suas frases breves e cortantes, o trauma de descobrir uma irmã mais velha que não conheceu — e sobre a qual nunca conversou com os pais. O texto curto e intenso é resultado de um convite feito à escritora, no final da década de 2000, para participar da coleção francesa “Les Affranchis”, que pedia a autores que escrevessem a carta que nunca foi escrita.

Na sua carta à irmã morta, a francesa põe à prova mais uma vez os limites do seu projeto literário, que atrela memória, história privada e social, identidade e ausência. Leia a seguir um trecho de A outra filha, que será lançado no dia 24 de agosto.

Trecho de A outra filha

A cena dessa história aconteceu durante as férias de 1950, último verão das brincadeiras intermináveis que iam da manhã até a noite com as primas, algumas meninas do bairro e gente da cidade passando férias em Yvetot. Fazíamos de conta que éramos comerciantes, gente grande, e construíamos nossas casas nas muitas dependências do pátio da loja dos pais, com engradados de garrafas, papelão e velhos tecidos. Cada uma cantava na sua vez, de pé sobre o balanço, “Il fait bon chez vous Maître Pierre” e “Ma guêpière et mes longs jupons, como se fosse um concurso de rádio. Saíamos para colher amoras. Os pais não deixavam os meninos irem, sob o pretexto de que eles preferiam as brincadeiras mais brutas. No fim do dia nos separávamos, todas imundas. Eu lavava os braços e as pernas, feliz de poder recomeçar tudo no dia seguinte. Um ano depois, as meninas estariam cada uma num canto, ou emburradas, eu ficaria entediada e não faria nada além de ler.

Queria continuar descrevendo aquelas férias, me demorar mais ali. Contar a história dessa história é acabar com a imprecisão do que foi vivido, é como tentar revelar um filme guardado num armário há sessenta anos e nunca aberto.

Foi num domingo à tarde, no trecho inicial de uma rua estreita que margeia os fundos da mercearia e do café dos meus pais, a Rue de l’École, assim chamada por causa da escolinha particular que teria existido ali no começo do século, perto do canteiro de rosas e dálias, protegido por uma grade alta que acompanha o muro sobre um declive cheio de mato. Do outro lado, uma cerca viva espessa e alta. Por um bom tempo, minha mãe fica conversando um assunto sério com uma moça do Havre que passa as férias com a filhinha de quatro anos nos sogros, os S., cuja casa está uns dez metros adiante na Rue de l’École. Ela deve ter saído da loja, que durante as férias nunca fecha, para continuar a conversar com essa cliente. Estou brincando de pega-pega perto delas com a menininha, chamada Mireille. Não sei o que me acendeu um alerta, talvez a voz da minha mãe, que de repente ficou mais baixa. Comecei a escutar, como se eu não respirasse mais.

Não consigo reconstituir a história, apenas o teor e as frases que atravessaram todos os anos até hoje

Não consigo reconstituir a história, apenas o teor e as frases que atravessaram todos os anos até hoje, que num instante se alastraram por toda a minha vida de criança como uma chama muda e sem calor, enquanto eu continuava dançando e rodopiando ao lado dela, a cabeça baixa para não despertar nenhuma suspeita.

[Aqui me parece que as palavras rasgam uma zona crepuscular, me engolem e acabou.]

Ela conta que eles tiveram outra filha além de mim e que ela morreu de difteria aos seis anos, antes da guerra, em Lillebonne. Ela descreve as placas na garganta, a asfixia. E diz: ela morreu como uma santinha

ela reproduz as palavras que você disse antes de morrer: estou indo ver a Virgem Santa e o bom Jesus

ela diz meu marido ficou louco quando a encontrou morta ao voltar do trabalho nas refinarias de Port-Jérôme

ela diz não é a mesma coisa perder um companheiro

ela diz de mim ela não sabe de nada, não queríamos que ficasse triste

No fim ela diz, referindo-se a você, ela era mais boazinha do que aquela ali

Aquela ali sou eu.

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.