Teatro,

Delírios realistas

Guel Arraes e Jorge Furtado adiantam o calendário eleitoral em um ano e narram um debate fictício entre Lula e Bolsonaro

01out2021 | Edição #50

Graças ao controverso histórico de atleta do presidente Jair Bolsonaro, forjado, pelo visto, na modalidade fuga de debates, e a sua reincidente falta de apreço pelas boas práticas democráticas, é provável que os brasileiros não tenham a oportunidade de assistir, na reta final das eleições do ano que vem, a um confronto televisivo entre o atual mandatário e o ex-presidente Lula, apontados até o momento como os dois candidatos com chances mais robustas na disputa por um eventual segundo turno.

Diante da incerteza da realização de um duelo real envolvendo os dois políticos, os escritores e diretores Guel Arraes e Jorge Furtado decidiram adiantar o calendário eleitoral em um ano e entregar ao público, sem o enfado do horário eleitoral, a peça O debate, um confronto fictício entre Lula e Bolsonaro que, segundo as palavras dos autores, “foi escrita na urgência dos acontecimentos políticos de 2021 e será filmada e encenada assim que for possível e reescrita assim que for necessário”.

Não se trata de um alerta vazio: a peça é de tal forma ancorada nos fatos e números que compõem o caos do cotidiano brasileiro que basta um momento de desatenção para uma obra nascida há poucos meses adquirir o gosto de jornal da semana passada. Ao assumirem o risco de criar uma peça que emula o jornalismo da primeira à última fala, Arraes e Furtado, dois nomes essenciais à consolidação da ficção brasileira das últimas décadas, talvez tenham ajudado a dar um novo significado ao desgastado termo dramaturgia contemporânea.

O debate é ambientado em outubro de 2022, ao longo da noite em que se realiza o último debate televisivo entre Bolsonaro e Lula, os candidatos que, perfilados em lados opostos de um país com as chagas da pandemia e da crise política eternamente abertas, reuniram fôlego e seguidores em quantidade suficiente para assegurar-lhes um lugar na disputa pelo segundo turno das eleições presidenciais. Além do desemprego, da economia que insiste em reproduzir o metabolismo de um bicho-preguiça e da polêmica que permeia todas as questões identitárias, os candidatos ainda se encontram às voltas com o avanço da sigma, uma nova variante do coronavírus que apresenta um ritmo de contágio assustadoramente elevado.

Ainda que carregue, como várias vezes o texto insinua, boa parte da responsabilidade pela morte de 600 mil brasileiros vítimas da pandemia, Bolsonaro chegou ao segundo turno tecnicamente empatado com Lula — um dado que por si só fornece combustível de ótima qualidade para que o principal conflito da peça jamais desacelere. Mesmo com a trama se desenrolando em um futuro que praticamente já bate à porta, os autores desviaram da tentação, comum nesses casos, de recorrer a previsões e a infrutíferos exercícios de futurologia: o Brasil que aflora em O debate é exatamente o Brasil que, neste momento, se apresenta no jornal da manhã e retorna mais tarde para alimentar nossos pesadelos no noticiário noturno. Para o bem e para o mal, é um país que dispensa o auxílio da ficção.

Os candidatos são perfilados em lados opostos de um país com as chagas da pandemia e da crise política eternamente abertas

Embora a estrutura da peça — e uma de suas razões de ser — se organize em torno do debate presidencial, Lula e Bolsonaro surgem apenas como citações de luxo. Em nenhum momento os dois candidatos ganham status de personagem: não se vê a figura deles nem sua voz é ouvida. Como políticos que são, eles atuam nos bastidores, e suas performances no debate chegam ao conhecimento do leitor por intermédio de dois jornalistas, Marcos, 60 anos, e Paula, 42, estes sim os verdadeiros personagens da história. Separados há poucas semanas depois de um casamento que durou vinte anos, são eles que tornam públicos os detalhes do debate presidencial fictício, realizado em um estúdio de televisão, e, muito além disso, promovem entre si o verdadeiro duelo verbal da peça, no qual muitas vezes a discussão política cede terreno para questões éticas e profissionais e também para a radiografia da crise conjugal que pôs fim ao casamento dos dois.

Marcos é editor de um telejornal noturno, que tem Paula como âncora. A trama da peça se estende ao longo de treze cenas relativamente curtas, que têm como cenário o terraço do prédio e o fumódromo de uma emissora de televisão. É nesses ambientes que, celular na mão e cigarro na boca, a dupla de jornalistas se encontra repetidas vezes, antes do início do debate, nos intervalos do programa e na noite seguinte, com as eleições já encerradas e 30% das urnas apuradas. São personagens-mensageiros, que surgem em cena a intervalos regulares para atualizar as notícias a respeito de si próprios e de um país cujo futuro está, naquele momento, sendo desenhado pelas falas de Lula e Bolsonaro em um debate do qual só ouvimos os ecos.

Alquimia

Paula e Marcos não só exercem a mesma profissão como são apoiadores de Lula, críticos da gestão Bolsonaro e alinhados a algumas pautas ideológicas caras à esquerda. À primeira vista, pode parecer difícil gerar e manter em temperatura crescente uma situação dramática a partir de personagens que compartilham tantas semelhanças. O exercício de alquimia dos autores consistiu em dosar os diferentes graus em que as convicções políticas dos personagens se revelam. Intempestiva e obstinada, Paula tem dificuldade em compreender como um país tão espoliado está propenso a conceder um segundo mandato a um político que desprezou as vacinas, criticou o distanciamento social e o uso de máscaras e aparentemente não fez nada para evitar que a Amazônia e o Pantanal se convertessem em crematório. Marcos, ao contrário, agarra-se com fervor religioso a uma isenção jornalística na qual as ações de Bolsonaro podem e devem ser discutidas, mas não previamente condenadas.

O esforço talvez fosse menor e o resultado mais catártico se os autores tivessem decidido fazer de Marcos e Paula porta-vozes irredutíveis de um país conflagrado, de uma sociedade impermeável ao diálogo e à diversidade. Em vez disso, permitiram que o afeto, o respeito pelo contraditório e a livre circulação de ideias produzissem uma amabilidade na relação do casal da qual o país parece sentir muita saudade. Arraes e Furtado escreveram uma peça, mas também apontaram um caminho. É o teatro fazendo o dever de casa. Resta à política aprender a lição.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Roveri

Escreveu Um beijo em Franz Kafka (Giostri).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.